segunda-feira, 25 de outubro de 2010

VALENTE

Para o mestre Antunes Filho, que aprecia esta história.

“É estranho mas verdadeiro, pois a verdade é sempre estranha – mais estranha que a ficção.”
Byron, em “Don Juan”.


Orozimbo Valente, O. Valente, Valente ou, simplesmente, Vale, é considerado o maior ator rodrigueano do nosso teatro. Milton Morais, Jorge Dória, Osvaldo Loureiro, José Maria Monteiro, Nélson Caruso, Ivan Cândido, Jece Valadão e tantos outros grandes atores interpretaram Nélson Rodrigues e souberam tirar proveito do “prato cheio” que os textos do nosso maior autor teatral oferece aos seus intérpretes. Mas Valente é imbatível. Quem o viu em “Os Sete Gatinhos”, em “Álbum de Família” ou em “Bonitinha mas Ordinária”, jamais esquecerá a verve, o humor corrosivo, a truculência e a dramaticidade que emanava daquela figura enorme e poderosa.
E Valente propiciou a um jovem ator uma experiência inusitada: durante um espetáculo, diante de uma platéia lotada, ele foi apresentado a um colega que ele nunca tinha visto antes e de quem nem sequer tinha ouvido falar.

Nélson Rodrigues teve seus primeiros textos montados no Rio de Janeiro na década de quarenta, mas em São Paulo, até os anos setenta – ao contrário de que ocorre hoje - o genial autor era mal recebido em montagens esporádicas que vinham do Rio. Dizia-se que Nélson não fazia sucesso em São Paulo, da mesma forma que Abílio Pereira de Almeida, do TBC paulista, não era bem aceito no Rio. Até mesmo o grande Ziembinski – quem primeiro descobriu a genialidade de Nélson - tivera a ousadia de montar “O Boca de Ouro” em São Paulo, reservando para si o personagem protagonista, o que resultou em retumbante fracasso: público e crítica não aceitaram aquele bicheiro carioca falando com sotaque polonês.
Foi então que uma atriz e produtora resolveu correr o risco de montar “Bonitinha mas Ordinária” em seu teatro de São Paulo.
Depois de alguns testes, o nosso jovem ator foi escolhido para representar Edgar, o herói da peça, que é obcecado por uma frase do Otto Lara Resende: “O mineiro só é solidário no câncer.” Para o personagem do dr. Werneck, que se opõe a Edgar, o diretor do espetáculo fez questão de trazer do Rio de Janeiro um ator por quem ele tinha admiração, o grande Valente, que por sinal já tinha feito o personagem na primeira montagem da peça, no Rio, em 1962.
Como Valente já conhecia bem o personagem, ele só chegou a São Paulo na segunda ou terceira semana de ensaios. Veio acompanhado da mulher e de um cachorrão de estimação, sendo instalados num apartamento no mesmo prédio do teatro. Segundo o administrador da companhia, a idéia de manter Valente por perto era proposital, já que ele carregava a fama de ser temperamental. Hoje diríamos que, apesar de também ser psicanalista, o grande ator sofria de “transtorno bipolar”.
Naturalmente que na classe teatral a lenda de Valente já era bem conhecida. Além da carreira de ator, ele sempre tivera o sonho de ser médico. Dizem que cursou medicina durante uns vinte anos, formando-se com mais de cinqüenta, e agora com mais de sessenta anos nas costas também exercia a profissão de médico psicanalista num hospital público. “Só um louco faria a loucura de que se tratar com o louco do Valente”, diziam as inumeráveis más línguas do teatro.
Outro fato curioso referia-se ao nome artístico de Valente. Ele odiava o nome que recebera na pia batismal: Orozimbo. Tanto assim que, em seus primeiros trabalhos como ator, ele assinava apenas O. Valente. Mais tarde passou a ser apenas Valente. E ai de quem o chamasse de Orozimbo! Dizem que o homem partia pra briga.
Tudo transcorreu normalmente durante os ensaios do espetáculo. Os problemas começaram a acontecer logo depois da estréia. Uma hora antes da peça começar, Valente descia do seu apartamento e ia tomar uma biritas no botequim que ficava ao lado do teatro. Assim ele conseguia driblar a mulher, uma santa senhora, que o tratava com zelo maternal mas sob rédea curta. Todos que participavam do espetáculo, e que reverenciavam o extraordinário ator, começaram a estranhar o seu crescente mau humor.
Certo dia, Valente pediu pra ter uma conversa séria com o diretor.
“O jovem ator me olha no fundo dos olhos!”, reclamou Valente.
“E isso não é bom?”, estranhou o diretor.
“Não naquela cena!”, gritou Valente.
Na tal cena, o dr. Werneck diz a Edgar com violência: “Você vai casar com a minha filha, mas não se esqueça que você é um ex-contínuo!”. Ao que Edgar responde: “Tá certo. Eu sou um ex-contínuo. E você é um filho da puta. Seu filho da puta!” Nisso a luz cai encerrando a cena com grande impacto.
Valente argumentou que o jovem ator levava a ofensa para o plano pessoal, chamando ele, Valente, de filho da puta.
Claro que não se tratava disso. Pelo contrário, o jovem ator tinha respeito e admiração pelo colega veterano.
Nélson Rodrigues é sempre enxuto, econômico, preciso. Não exatamente como hoje, em que se corta e se adapta Nélson a torto e a direito, naquela época mexer num texto do autor seria uma heresia que ele não permitiria. No entanto, a fim de acalmar Valente, o diretor pediu que Edgar evitasse o “filho da puta” e o chamasse de “bosta”: “Eu sou um ex-contínuo e você é um bosta. Seu bosta!”. O jovem ator, claro, aceitou a ordem, mesmo sabendo que a cena perdia o impacto, porque nada como o palavrão adequado na hora certa.
Não adiantou grande coisa a mudança do texto. Valente continuou chegando em cima da hora, enchendo com bafo de bebida o pequeno camarim que dividia com o jovem ator. Um silêncio pesado se estabeleceu entre os dois, acentuado pela timidez do jovem ator diante do mau humor daquele monstro sagrado. Alertada pela produção ou porque o próprio Valente comentasse alguma coisa em casa, sua mulher esperou certo dia o jovem ator na porta do teatro.
“Desculpe o Vale, meu filho. Ele tá com alguns problemas. Ele é como uma criança. Desculpe ele”, disse a mulher. O jovem ator ficou tão sem graça que nem soube o que responder. Sua admiração pelo grande ator sempre permanecera a mesma.
Até que, certa noite, Valente não apareceu no teatro. O administrador da companhia subiu até o apartamento do ator e descobriu que, momentos antes, ele tinha ido pra rodoviária com a mulher e o cachorro. Ele voltava para o Rio sem avisar ninguém.
Já eram quase nove horas da noite e um bom público aguardava na sala de espera o início do espetáculo, que seria suspenso, claro. Aí veio uma notícia surpreendente. Havia um outro ator que iria fazer o papel de dr. Werneck a partir daquela noite. E esse ator chamava-se Evilásio Marçal.
O jovem ator ficou pasmo. Primeiro a inesperada fuga de Valente. Depois esse outro ator, que surgia do nada pra salvar a continuidade imediata do espetáculo. Ele nunca tinha visto e nem nunca tinha ouvido falar desse tal Evilásio Marçal. Como é que um sujeito desconhecido ia entrar no espetáculo assim de repente, num papel tão difícil e sem nenhum ensaio?
Foi então que a produtora explicou o que estava acontecendo. Desde que Valente começara a dar problemas, ela contratara alguém para substituí-lo: um ator do teatro de revista, a quem o diretor do espetáculo também admirava. Fazia algum tempo que Evilásio assistia aos espetáculos. Tinha decorado o texto e as marcações. Como Valente o conhecia, Evilásio se escondia no fundo da platéia, a fim de não despertar nenhuma desconfiança no outro a respeito de sua possível substituição. Avisado por um telefonema, ele já estava a caminho do teatro, vestindo o seu figurino de cena, um smoking.
Agora já eram mais de nove e meia, o público se impacientava. Quando Evilásio apontou na porta do teatro, o espetáculo teve início. Havia uma passagem por cima da platéia que Evilásio utilizou, enquanto transcorriam as primeiras cenas de Edgar. Por isso, o jovem ator e o estreante não se encontraram nos bastidores. Até o momento em que o dr. Werneck entra em cena por um lado do palco, Edgar pelo lado oposto, e são apresentados um ao outro. “Edgar, quero te apresentar o teu futuro sogro, o dr. Werneck”, diz o cafajeste do dr. Peixoto, que tinha planejado aquele estranho casamento.
Assim o jovem ator acabou conhecendo Evilásio Marçal no palco e na vida real, ao mesmo tempo. Ele tinha imaginado que, ao entrar em cena, iria encontrar um sujeito grandalhão como Valente, mas, ao contrário, Evilásio era baixinho. E, no final dessa cena, o texto ofensivo à mãe do dr. Werneck pode ser retomado sem nenhum problema.
Sem nunca ter ensaiado com o elenco, Evilásio não errou nenhuma fala ou marcação,
neste ou nos outros espetáculos que se seguiram por mais alguns meses. Fora de cena, era um sujeito extremamente gentil. Tinha um emprego público e vestia-se sempre de terno e gravata. Depois que a peça saiu de cartaz, o jovem ator nunca mais o viu e nem teve notícias dele. E até hoje – não fosse o testemunho de outras pessoas que conheceram Evilásio Marçal – tem a impressão de que ele não passa de uma miragem com que uma vez contracenou.
Quanto ao problema de Valente, que não conseguia suportar a agressão verbal à mãe do seu personagem, logo surgiu uma possível explicação. Parece que, pouco antes de voltar para o Rio, sob os efeitos do álcool, o ator teria revelado a alguém da produção que, quando menino, vivera nas proximidades da avenida São João, no centro de São Paulo, onde sua mãe fazia a vida. Se isso for verdade, o fato é bastante curioso: o psicanalista dr. Orozimbo Valente não conseguiu superar o seu próprio trauma infantil. Situação dramática bem rodrigueana.

Depois de “Bonitinha mas Ordinária, o jovem ator encontrou Valente apenas mais uma vez. Alguns anos mais tarde, no Rio de Janeiro, visitando uma amiga que morava na rua Piragibe Frota Aguiar, que limita Ipanema e Copacabana, ele foi até a janela do apartamento examinar o belo sol de verão que fazia lá fora. Como esta rua é muito estreita, sua atenção foi logo despertada por um homem gordo, de bermuda e sem camisa, que brincava com um cachorro na sala de um apartamento em frente. De repente o homem veio até a janela e deu de cara com o jovem ator que o observa com curiosidade. Houve um instante de embaraço e os dois acabaram se reconhecendo. O jovem ator, em sua timidez, não sabia o que fazer, talvez fugir da janela, como se nada tivesse acontecido. Foi salvo porque Valente sorriu pra ele, ao mesmo tempo em que lhe enviava um gesto da saudação.
Foi um gesto de adeus. Poucos dias depois, já em São Paulo, o jovem ator soube pelos jornais que o grande Valente tinha falecido repentinamente no dia anterior. Que ele descanse em paz!

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

NA JANELA

“O medo foi a primeira coisa que os deuses criaram no mundo.”
Statius, em “Tebaida”.

A velha senhora acabou de sair do supermercado e agora arrasta o carrinho de compras em direção ao seu apartamento. São três quadras pela calçada meio esburacada. Em sua direção vem um rapaz barbudo, que faz parte do bando de moradores de rua que há alguns dias se instalou por debaixo das marquises daquela rua.
Depois de se cruzarem, a velha senhora desconfia que o rapaz parou e que virá atacá-la pelas costas. Ela se vira e vê o rapaz parado junto ao meio-fio.
“Que é que tá olhando, velha?”, pergunta o rapaz. “Tu qué apanhá?”
Ainda mais assustada, a velha senhora prossegue o seu caminho o mais rápido que pode, com medo que o rapaz venha ao seu encalço.
Ela mora sozinha num apartamento térreo do pequeno edificio. A janela do seu quarto-sala dá diretamente para a calçada. Antes de dormir, ela costuma ler na cama algum livro da coleção “Sabrina”, pra espantar as idéias tristes. Alguém bate na janela e a velha senhora, como sempre, leva um susto. Pode ser algum vizinho, algum parente. Ela abre uma fresta na janela protegida por uma grade de ferro. Lá está o rapaz barbudo.
“Pelo amor de Deus, a senhora não me arranja um prato de feijão com arroz?”, pergunta ele. “Eu tô morrendo de fome.”
A velha senhora sente pena do pobre coitado. Espírito generoso não lhe falta: faz poucos dias, a pedido do pároco da igreja de São João, ela acompanhou a caminhada final dos “sem terra” pela avenida Farrapos até o Palácio Piratini, no centro de Porto Alegre.
“Posso te oferecer café com leite”, diz ela. “Espera um pouquinho que eu vou esquentar o leite.”
Ela apanha no armário uma caneca de metal que tinha comprado na loja de 1,99 e que ainda não tinha usado. Através da grade, ela entrega ao rapaz a caneca de café com leite e um pãozinho com manteiga.
“Olha”, diz o rapaz depois de se alimentar, “a senhora tem que lavá bem essa caneca, lavá com água quente e sabão, porque eu tenho HIV.”
A velha senhora tem um momento de hesitação e depois devolve a caneca ao rapaz, dizendo:
“Fica com ela. Assim, quando tu precisar de uma caneca, tu já tem.”
Na noite seguinte, luz acesa no quarto, o rapaz bate novamente na janela. A velha senhora atende.
“Quero lhe pedi um favor”, diz o rapaz. “A senhora pode me emprestá um pouco de gel pra passar no cabelo? Resolvi fazê uma visita pra minha mãe e quero ir com as melena bem penteada.”
A velha senhora vai até o banheiro e volta com um pote de brilhantina que foi deixado ali por um sobrinho há mais de trinta anos.
“Pode ficar com o potinho”, diz ela.
“Muito obrigado, senhora”, diz o rapaz. “Sabe, vou visitar a minha mãe por causa da senhora.”
“Como assim?”
“A senhora se parece muito com a minha mãe, tem a cara dela. Por isso, fiquei com saudade dela. Amanhã vou procurar por ela.
“Vai, meu filho, vai sim. Tua mãe vai cuidar de ti. Estás precisando dela”, encerra a velha senhora, já fechando a janela.
“Só mais um favor”, diz o rapaz. “A senhora não me empresta vinte reais pra eu pegá o ônibus? A minha mãe mora no interior, em Osório.”
Então a velha senhora vai até a cozinha e apanha vinte reais de dentro de um açucareiro, onde esconde o dinheiro que recebe do INSS.
Na terceira noite, a velha senhora está lendo na cama “O Grande Amor de Eduarda” quando batem na janela. Ela desliga a luz. Lá da rua, o rapaz grita:
“Não adianta tu apagá a luz, velha! Eu sei que tu taí!”

domingo, 22 de agosto de 2010

O FIGURANTE

“Desejar a imortalidade é desejar a eterna perpetuação de um grande erro.”
Schopenhauer


No dia anterior, a produção do filme tinha me avisado que, finalmente, iríamos rodar a sequência do cemitério, que ainda faltava para a conclusão da filmagem. A dificuldade tinha sido conseguir autorização oficial de algum cemitério da cidade pra que um bando de atores, técnicos e figurantes perturbassem o sono eterno dos que “já fizeram a passagem”, como diz um amigo meu. O cemitério seria em Perus, na Grande São Paulo.
Outro problema a ser solucionado tinha sido a questão do tempo. O diretor do filme queria um enterro debaixo de chuva, pois sabia que toda a cena de enterro que se preze tem que ter chuva e guarda-chuva. Como o serviço de meteorologia estava prevendo um dia de sol, a produção fez um grande esforço e conseguiu a promessa do corpo de bombeiros de Perus de enviar uma guarnição para produzir uma chuva artificial.
Portanto, aí pelas oito horas da manhã seguinte, uma Kombi entrou pela rua principal do cemitério trazendo a mim e mais meia dúzia de atores que participariam da filmagem. Fomos descarregados junto a um jazigo de mármore cuja imponência contrastava com a humildade dos demais túmulos, alguns apenas cobertos de terra. Toda a sequência deveria ser rodada ao redor desse túmulo majestoso guarnecido por um enorme anjo de asas abertas.
Perto dali, uns trinta figurantes já nos aguardavam, vestindo os seus melhores trajes, já que a produção paupérrima não lhes fornecia o figurino. E o enterro tinha de ser chique: o falecido era um velho industrial riquíssimo que deixava uma grande fortuna que iria ser disputada pelos herdeiros. Meu personagem era o de um safardana casado com uma filha do morto.
Nesse primeiro momento, olhamos aquela infinidade de túmulos com enorme respeito, com aquele ar compungido que sempre temos diante da morte. Em situações como essa, somos praticamente obrigados a fazer uma reflexão sobre a nossa curta existência e o nosso fim. Percebi isso ao observar o comportamento da velha atriz que interpretava a viúva do industrial: ela se benzeu e murmurou uma rápida oração. Devia estar pensando em sua própria morte, o que de fato ocorreu alguns meses depois, antes mesmo do filme entrar em exibição. Ela tinha sido uma grande estrela no início da Tevê Tupi e agora, melancolicamente, estava encerrando sua carreira como coadjuvante numa pornochanchada da Boca do Lixo.
Daí a pouco, o caminhão de bombeiros chegou e apenas ficou por ali de sobreaviso, pois o tempo tinha mudado, começava garoar. Os cinco ou seis bombeiros ficaram sentados sobre o caminhão observando com curiosidade a atividade da equipe de filmagem. O tenente de meia idade que comandava a guarnição aproximou-se da velha atriz e pediu um autógrafo: “Pra minha mãe, que é sua fã”, explicou ele.
Pouco depois começamos a ensaiar a primeira tomada. A laje que cobria a cova tinha sido retirada, para que o caixão baixasse sob as nossas vistas. Nós, atores, fomos colocados diante da câmera, o caixão em primeiro plano, enquanto que a figuração foi convocada para se posicionar às nossas costas. Quando o grupo de figurantes se aproximou, o diretor do filme – um sujeito de maus bofes e extremamente ferino – avaliou a indigência do que tinha para realizar sua grande obra, e comentou: “Mas olha só os amigos que o finado tinha!”
Mas um determinado figurante chamava a atenção. Magro e alto, bem vestido num terno elegante, foi colocado pelo assistente de direção justamente atrás de mim e da bela atriz que interpretava minha mulher. Na hora de rodar a cena, olhei para trás e percebi que ele sabia se posicionar muito bem ali, como um profissional, um autêntico “papagaio de pirata”. O que estaria fazendo ali, no meio daquela bugrada, um sujeito tão fino, com pinta de executivo bem sucedido?
Câmera rodando, no meio da cena, “minha mulher” deu um grito, interrompendo a filmagem. “Um filho da puta passou a mão na minha bunda!”, disse ela.
Fulo da vida, o diretor olhou para o nosso figurante e vociferou: “Mais respeito, cara! É por isso que o cinema nacional não vai pra frente... Tô de olho em você! Como é o seu nome?”
“Robério de Souza, um seu criado”, respondeu o sujeito com a cara mais inocente deste mundo.
“Só te mantenho no filme porque você é o único desses figurantes de merda que tem panca de rico! Se não, te mandava pra puta que o pariu!”, explodiu o diretor.
“Obrigado por não me despedir, senhor”, agradeceu o figurante fazendo uma elegante reverência. “Muito obrigado por me deixar realizar o sonho da minha vida, que é ser ator de cinema que nem o Rodolfo Valentino.”
Surpreendido por uma resposta tão gentil e sem saber quem era Rodolfo Valentino – talvez algum jovem galã da Tevê Globo? – o diretor se desarmou e encerrou o assunto: “Então bola pra frente! Vamo rodá!”
A partir daí, o trabalhou transcorreu normalmente. As pessoas foram se descontraindo e até esquecendo de que estavam num cemitério. Passou o cortejo de um enterro com acompanhantes chorando e o pessoal do filme não tomou conhecimento: continuaram falando alto e às gargalhadas, como se estivessem num botequim. A velha atriz contava para a maquiadora um episódio interessante que acontecera com ela na noite em que a Tevê Tupi foi ao ar pela primeira vez: o manda-chuva da emissora tinha passado a mão na bunda dela, exatamente como acabou de acontecer. De repente, um ator que deveria participar da próxima tomada desapareceu; o assistente de direção saiu a sua procura e foi encontrá-lo atrás de um túmulo em intimidades com um bombeiro. Na hora do almoço, comemos nossas “quentinhas” sentados sobre os túmulos, tão à vontade como se estivéssemos no restaurante Gigetto. Que falta de respeito!
Certo momento, vi o tal Robério de Souza se aproximar da “minha mulher” e conversar com ela. Logo depois ela me explicou: “O sujeito veio me pedir desculpas. Disse que não conseguiu resistir porque minha bunda é muito bonita. Olha só que cara de pau!”
No final da tarde, tínhamos acabado de rodar o filme. Antes de me dirigir a Kombi, que já manobrava para nos trazer de volta a São Paulo, me bateu a curiosidade de saber quem era o ocupante do túmulo que nos servira de cenário. Fiquei pasmo! O mármore estampava uma pequena foto esmaltada do nosso figurante, além do nome Robério de Souza, datas de nascimento e morte, e as palavras de praxe, “descanse em paz” etc.
Não gosto e nem tenho o hábito de me ver na tela, mas fiz questão de assistir o filme quando ele foi exibido alguns meses mais tarde. Robério de Souza não aparece na sequência do cemitério como meu “papagaio de pirata”. Sumiu.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

O DUBLADOR

“Se um cego guiar outro cego, os dois cairão num buraco.”
Evangelho segundo s. Mateus, cap.5, v.14


Era só Abelardinho e a mãe neste mundo, morando no apartamento quarto-sala conjugado do edifício 200 da Barata Ribeiro, o mais famoso “balança” do Rio de Janeiro no final da década de 60.
Primeiro, ele viera sozinho do sertão cearense. Depois de três anos de luta pela sobrevivência, trouxera a mãe, já quase cega naquela époc a, o sol inclemente da seca lhe queimara as retinas.
Lá na cidadezinha do sertão, Abelardinho tinha visto alguns filmes da Atlântida e ficara fã de José Lewgoy. Achava o máximo a voz e o bigode do famoso vilão do cinema nacional. Anselmo Duarte e Cyll Farney não lhe diziam nada, muito menos Eliana ou Fada Santoro. Daí nasceu sua vontade de se tornar ator de cinema. Sendo assim, “pegou um ita no norte e veio pro Rio morar”, seguindo o exemplo de Dorival Caymi.
Agora trabalhava como atendente no Banco Nacional em Copacabana, perto de casa. Nas horas vagas corria atrás da carreira artística, no cinema, no teatro e na televisão. Mas não conseguia penetrar naquele universo maravilhoso, talvez por causa da cara feia e do corpo desajeitado, como ele mesmo acreditava. Na verdade, era um sujeito despreparado, com uma visão ingênua do que seria a profissão de ator.
Acontece que no 200 também morava um artista famoso – famoso no prédio, pelo menos -, Eduardo Del Dongo, que atuava nos teleteatros da Tevê Tupi, além de ser dublador de filmes estrangeiros. Um dia Abelardinho cruzou com ele no elevador do prédio e logo se enturmou. Penalizado com a situação do vizinho aspirante a ator, Del Dongo resolveu apresentá-lo ao estúdio de dublagem em que trabalhava. E Abelardinho começou por onde todo o dublador começa: fazendo o que se chama de “vozerio”, aquelas vozes anônimas de um grupo de personagens falando ao mesmo tempo.
A seu favor, Abelardinho tinha uma voz muito grave e bonita. E foi perdendo o forte sotaque nordestino por causa dos exercícios vocais que Del Dongo lhe passava.
Durante uma dessas aulas, aconteceu um episódio interessante. Estavam no apartamento de Del Dongo e Abelardinho pediu licença pra ir até o banheiro. Como o aluno demorasse algum tempo a voltar à lição, o professor resolveu verificar o que estava acontecendo. Empurrou a porta do banheiro e flagrou Abelardinho, muito concentrado, cheirando uma cueca samba-canção que ele, Del Dongo, tinha acabado de usar. “Nada do que é humano me choca”, pensou Del Dongo, lembrando-se de uma frase que Cacilda Becker dissera recentemente numa peça de Tennessee Williams. Por isso, fechou a porta do banheiro discretamente e fez que não tinha visto nada de extraordinário.
Uma nova série, que estava fazendo um grande sucesso nos Estados Unidos, ia ser lançada na Tevê Globo. O protagonista era um policial machão que dava porrada e falava grosso. Depois de alguns testes, a empresa dubladora escolheu Abelardinho para dublar o ator americano. Este trabalho fixo rendia um cachê razoável e, então, Abelardinho aproveitou a oportunidade pra largar o banco e se dedicar inteiramente à carreira artística.
Agora sua mãe, bem acabadinha, já estava completamente cega. Diante desse fato, Abelardinho decidiu dar uma alegria à velha, anunciando que iria estrelar uma novela da Globo. Sem enxergar as imagens, apenas ouvindo a voz do filho, a ilusão maternal foi perfeita. Durante as três temporados do seriado, a velhinha cega viveu em plena felicidade com o sucesso do filho global.
Quando o seriado foi suspenso, devido a uma greve de dubladores que se estendeu por meses, Abelardinho entrou em pânico. Mas, nisso, a velhinha morreu repentinamente. “Pelo menos, morreu feliz”, pensou Abelardinho.
No 200, correu o boato de que ele tinha estrangulado a mãe.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Emprego

Escrevi este esquete a pedido de uma atriz. Ela o recusou porque o considerou pesado demais, cruel, com um humor politicamente incorreto. Concordo com ela.

PATRÃO, TIPO EXECUTIVO, MUITO EDUCADO E FORMAL, SENTADO DIANTE DE SUA MESA, LIGA O INTERFONE.
PATRÃO: Dona Teresinha, faça o favor de mandar entrar as candidatas. Quantas são? (............) Mais de cinqüenta?! Meu Deus! Faça uma coisa melhor, dona Teresinha. Tem alguma gorda aí? Uma gorda bem gorda? (.................) Faça o seguinte: mande entrar a mais gorducha e dispense o resto. (...............) Isso mesmo. Obrigado.
ENTRA UMA MULHER GORDA, DE UNS TRINTA ANOS, CARREGANDO UM PORTFÓLIO.
MULHER: Com licença...
PATRÃO: Entre, senhorita... (ELA VAI SE SENTAR, MAS ELE INTERVÉM.) Por favor, fique de pé um instante. Eu gostaria de verificar cuidadosamente o seu visual.
MULHER: Tudo bem, doutor, mas não deixa de ser uma coisa estranha. Porque eu não vim me candidatar a um emprego de modelo. Se bem que o anúncio do jornal era meio misterioso e não especificasse o tipo de trabalho. Em todo o caso, espero que o senhor goste do meu estilo. Tá certo que eu to meio cheinha: exagerei nos doces nesse último fim de semana. Mas se eu fizer uma dietazinha, em uma semana fico magrinha-magrinha. Mas também não posso exagerar, se não vai dar a impressão de que sou anoréxica... e eu não quero que as pessoas fiquem me olhando com olhar de piedade, como se eu estivesse morrendo de inanição por não ter o que comer. Porque eu tenho o que comer e como. E como como!
PATRÃO: Percebe-se.
MULHER: (DEPOIS DE FAZER UM PIVÔ) Então? Gostou?
PATRÃO: Muito. Pra mim, tá perfeito.
MULHER: Que bom!
PATRÃO: Por favor, sente-se. (ELA SENTA, COLOCANDO SEU PORTFÓLIO SOBRE A MESA.) É o seu currículo?
MULHER: Meu portfólio, como dizem as modelos. Deixa eu lhe mostrar as minhas fotos. Olha só que material interessante! Essa aqui sou eu e os meus cachorros.
PATRÃO: Quanto cachorro! A senhorita mora num canil?
MULHER: Imagina, doutor! Sou eu trabalhando. Foi um dos meus empregos. Eu era passeadora de cachorro.
PATRÃO: Passeadora de cachorro?!
MULHER: Exatamente. Este aqui é o Bobby, o meu preferido. Veja só que gracinha! Vivia me lambendo.
PATRÃO: O quê?!
MULHER: Lambendo a minha perna! Não seja malicioso, doutor.
PATRÃO: Desculpe... E por que deixou o emprego? Foi despedida?
MULHER: Não, eu deixei porque quis. Olha esse cachorrão aqui, o Manfredo. O maldito Manfredo! Um dia ele me arrastou ladeira abaixo e eu saí rolando feito uma bola. Me estrumbiquei toda! Fui parar no hospital! Depois dessa, adeus cachorrada! (MOSTRA OUTRA PÁGINA.) Aqui sou eu comendo um Big Mac, quando trabalhei de atendente no Mac Donald’s.
PATRÃO: E saiu do emprego por quê?
MULHER: Devo confessar que fui mandada embora. Cometi alguns erros. Eu mandava ver! Não conseguia resistir àquelas porções de batata frita, àqueles milk shakes de chocolate, àquelas tortas de banana, hum, que delícia!, já to com água na boca... (VIRA OUTRA PÁGINA.) Este aqui foi o meu último emprego...
PATRÃO: (INTERROMPENDO-A) Tudo bem, senhorita, não precisa mostrar mais nada. O emprego é seu.
MULHER: Que maravilha! E qual vai ser exatamente a minha função?
PATRÃO: Não se preocupe, é fácil. Pra senhorita, é fácil.
MULHER: Claro! Pra mim, todas as funções de uma secretária são fáceis. Sei falar inglês, francês, italiano, espanhol... e até japonês! Qué vê só? “Akira Kurosawa, Toshiro Mifune, Tatsuia Nakadai.” Ah! E tô fazendo um cursinho rápido de chinês, porque, como o senhor sabe, os chineses vão dominar o mundo. E também sou especialista em taquigrafia, computação e Xerox.
PATRÃO: A senhorita não vai precisar de nada disso, relaxe. Mas, com todo esse preparo, como é que até hoje a senhorita não arranjou um emprego melhor, como secretária bilíngüe, sei lá?
MULHER: Vai me dizer que o senhor não sabe? Não se faça de inocente. Patrão só admite secretária tipo modelo: magra e burra. O que não é o meu caso, como o senhor pode verificar... Mas o senhor me mata de curiosidade! Afinal, o que é que eu vou fazer?
PATRÃO: A senhorita vai exercer a função de... digamos assim... a função de rolha de poço.
MULHER: Nossa! Nunca ouvi falar desse cargo. O que é isso?
PATRÃO: Eu já explico. Tudo quanto é pepino da empresa desaba em cima mim. O dia inteiro entra aqui na minha sala um bando de gente inconveniente. É cliente fazendo reclamação, funcionário pedindo aumento, minha ex-mulher cobrando pensão, marido corno querendo me dar porrada. E muita gente de teatro pedindo apoio cultural! A senhorita vai barrar esses chatos.
MULHER: De que jeito, doutor?
PATRÃO: Facinho ! A senhorita vai bancar a rolha de poço. Quando aqueles pentelhos quiserem forçar a entrada... sim, porque eles são ousados e não respeitam nem os seguranças... nesse caso, a senhorita se coloca bem ali no vão da porta. Fica ali paradinha. Não precisa dizer nem fazer nada. Sua presença... e somente ela... vai impedir a entrada dos energúmenos. Entendeu?
MULHER: Entendi, doutor, agora entendi.
PATRÃO: E então? Aceita o emprego?
MULHER: Aceito, doutor...
PATRÃO: Que ótimo!
MULHER: ... mas com uma condição. Antes o senhor deve me responder uma pergunta.
PATRÃO: Pois não, pergunte.
MULHER: A senhora sua mãe é gordinha, não é?
PATRÃO: É, sim. Como é que a senhorita sabe disso?
MULHER: É uma coisa natural: com uma certa idade, as mulheres costumam engordar. Problemas hormonais, com o senhor deve saber. Mas o que eu quero lhe sugerir é o seguinte: (LEVANTANDO-SE DA CADEIRA) Por que o senhor não pega a sua mãezinha querida e bota ela ali na porta pra servir de rolha de poço?! (E SAI DA SALA PISANDO DURO.)
PATRÃO: (CONSIGO MESMO) Que gordinha mais mal-agradecida! Ganha um emprego sem precisar fazer o teste do sofá... e ainda fica fazendo doce! (LIGA O INTERFONE.) Dona Teresinha, sobrou alguma gorda por aí? (...............) Sei, foram todas embora... Então faça o seguinte: descubra onde os “gordos anônimos” se reúnem, pegue a fulana mais gorducha, ofereça-lhe uma feijoada do “Bolinha” e me traga aqui. Como disse o Albert Camus, “depois de uma feijoada, a peste!” (E DESLIGA O INTERFONE, ENCERRANDO-SE O QUADRO.)

domingo, 16 de maio de 2010

LOUCO

“A diferença entre um louco e eu é que eu não sou louco.”
Salvador Dali


Eu (me) convenceria como louco
se tivesse a coragem de sair
num belo dia de sol
com um guarda-chuva aberto
todo roto.
Enquanto isso não faço,
mantenho o máximo recato:
escolho com cuidado
a cor do cinto
combinando com
a cor do sapato.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

ABEL E FANNY

Para meu amigo Wagner Vaz, ator carioca, vizinho e fã de Fada Santoro.

“Benvólio: Ai de mim! Que o amor, tão gentil na aparência, tenha que ser tão cruel e tirano na prova!”
“Romeu e Julieta”, Shakespeare.


Foi no Rio de Janeiro, nos anos sessenta.
Se Abel - que interpretava Romeu - já estava arrasado porque a temporada de “Romeu e Julieta” acabava naquele domingo, mais arrasado ficou ainda quando percebeu que Fanny – a sua Julieta - tinha ido embora do teatro sem se despedir dele. Mas, de certa forma, isso não o surpreendeu: já estava acostumado com o estranho comportamento da garota por quem estava apaixonado.
Abel e Fanny faziam parte do grupo teatral da “Sociedade Literária Israelita Brasileira Baruch Spinoza”. Além dos jovens judeus que eram sócios da entidade, o grupo de teatro admitia atores semiprofissionais não judeus – ou “góis”, como eram chamados. No elenco de uns vinte atores, pelo menos a metade não eram judeus – sendo que um, inclusive, era de origem árabe, o que demonstrava claramente a face liberal da “Sociedade Spinoza”. Mas nem tão liberal assim, como veremos.
A experiência teatral anterior de Abel se resumia em duas peças infantis, em que interpretara, pateticamente, um coelho numa e um príncipe na outra. Tenso e nervoso, na estréia do espetáculo em que tentava representar o príncipe encantando, soltou um sonoro pum na cena de amor com a princesa e ficou rubro de vergonha: a platéia infantil morreu de rir. Mas isso não o traumatizou. Como sua secreta ambição era a de se tornar um novo Adriano Reys , ele não desistiu do seu sonho.
Maior que sua ambição era a sua timidez: em estado de pânico , apresentou-se para teste com o diretor de “Romeu e Julieta” - um velho judeu refugiado de guerra que se vangloriava de ter sido assistente de direção em filmes de Ernst Lubitsch e Fritz Lang, mas que, segundo as más línguas, tinha sido apenas um simples açougueiro em sua terra natal.
“Abel? O assassino de Caim?”, perguntou o diretor. “Você é judeu?”
“Eu sou mineiro”, respondeu o rapaz. “Abel é apelido e nome artístico. Meu nome é Abelardo.”
“Ótimo!”, comentou o diretor. “Julieta judia e Romeu “gói” dá samba. Eu preferia um Romeu negro, mas não tem ator negro neste país, só o Grande Otelo. Nesse caso, vai você mesmo, meu filho.”
Lá no fundo do coração todo o jovem ator sonha em interpretar Romeu, e Abel não fugia à regra. Mas, agora que o sonho estava prestes a se realizar, baixou a insegurança e o medo de ser mandado embora logo no primeiro dia de ensaio.
Naquela noite ele não conseguiu dormir direito de tão nervoso. E no dia seguinte, ao meio-dia, quando devia ficar no lugar do pai na portaria do edifício enquanto o velho ia almoçar, trancou-se no banheiro vítima de uma diarréia monumental. Se soubesse a causa do transtorno intestinal do filho, o pai teria dado bronca: no seu entendimento “teatro era coisa de veado”, como sempre dizia.
Abel e Fanny tinham vinte anos de idade, e a atração física que um sentiu pelo outro foi imediata, situação favorecida pelo amor trágico que envolve os protagonistas da peça e pelo processo de ensaio proposto pelo diretor. Com o pretexto de que a relação entre Romeu e Julieta deveria ser aprofundada, o velho diretor mandava o resto do elenco sair da sala durante as cenas do casal, e determinava exercícios de improvisação e contato físico, um tipo de preparação do ator que ainda não tinha se tornado coisa comum em nosso teatro. Durante esses ensaios privados, Samuel – que liderava o grupo teatral – ficava espionando pelo buraco da fechadura e, certa vez, pego em flagrante por um colega judeu, confidenciou-lhe:
“Nosso diretor deve ser mesmo um vigarista. Fica provocando os dois pombinhos, botando fogo na fogueira. Vai ver, o tarado se excita vendo sacanagem alheia.”
“Parece que você também!”, ironizou o colega.
A verdade era que Samuel já andava desconfiado das esquisitices do diretor desde o dia em que o encontrara sentado num banco da praia de Copacabana. O velho falava em ídiche consigo mesmo e apontava a mão para o céu fazendo estranhos sinais. Quando Samuel lhe perguntou o que era aquilo, ele respondeu que estava tentando derrubar um avião da Panair com gestos mágicos.
Os ensaios – que duraram meses devido à inexperiência do elenco e à dificuldade do texto – aconteciam na sede da “Sociedade Spinoza”, um prédio escuro na Cinelândia, com salas cheias de livros empoeirados, escritos em línguas que Abel desconhecia. Numa das saletas, alguns rapazes judeus costumavam jogar xadrez, coisa que Abel nunca tinha visto antes. Às vezes, ele ficava ao lado observando aquele jogo bizarro, sem se atrever a jogá-lo mesmo quando convidado. Tinha medo de perder feio e de se sentir humilhado pela inteligência daqueles rapazes, todos cursando a universidade, enquanto ele se considerava um ignorante que nem conseguira acabar o ginásio.
Além dos exercícios diante do diretor, Abel e Fanny aproveitavam todo e qualquer momento em que estivessem sozinhos para se atracarem aos beijos e abraços, cheios de sofreguidão e desespero. No fundo da sala de ensaio, havia uma coluna atrás da qual se agarravam como dois animais no cio. Mas, na frente dos outros, comportavam-se como simples colegas de ofício. Nunca tinham discutido o assunto, esse ou qualquer outro: quase não se falavam. Mas parecia haver um acordo mútuo de que ninguém deveria saber que havia alguma coisa entre os dois. Ele, que nunca tivera uma namorada firme, agia dessa forma por timidez, desconfiado de que ela fazia o mesmo porque não quisesse que seus amigos judeus soubessem do seu envolvimento com um “gói” que, pior ainda, não tinha onde cair morto.
Por ser secreta, a paixão que Abel sentia por Fanny aumentava a cada ensaio. Essa emoção verdadeira fez com que ele descobrisse sua alma de ator, depois de sua ingênua experiência em peças infantis. Jogando-se de corpo e alma no seu personagem, ele sentia finalmente a alegria e o prazer de representar. Agora não tinha mais dúvida de que era a essa a profissão que iria seguir pelo resto de sua vida, entendendo o que a grande atriz Dulcina de Moraes quisera dizer quando dissera: “Representar em cima de um palco é melhor que trepar.”
Fanny era filha única de um velho casal de judeus ortodoxos. Aos dezessete anos, para se livrar da opressão familiar, ela conseguiu que o pai a mandasse para Israel, onde foi morar num kibutz. Menina rica, sentia-se feliz capinando no deserto, distante do tédio que tinha sido a sua vida no Brasil. Um ano depois, estava servindo ao exército como soldada e se exercitando com uma metralhadora, sob a ameaça constante de uma eventual guerra contra os árabes.Nas areias de uma praia de Haifa, numa noite de verão, fez amor pela primeira vez com um colega de farda. Logo ficou grávida e, como não quisesse se casar com o colega, deu uma de louca e foi enviada de volta ao Brasil. Sem que ninguém soubesse, se submeteu a um aborto. E meses depois, sem ter nada o que fazer, resolveu experimentar ser atriz em “Romeu e Julieta”. Os pais não gostaram muito, mas acabaram concordando com a inesperada idéia da filha, pois, afinal, tratava-se de um grupo de teatro judeu. Consideravam a filha meio desequilibrada e, quem sabe, talvez ela encontrasse ali na “Sociedade Spinoza” um bom rapaz judeu com quem pudesse se casar.
Às vésperas da estréia - com os ensaios já acontecendo num clube israelita situado nas Laranjeiras, onde o espetáculo iria ser inicialmente apresentado - Abel percebeu que o chofer particular que quase sempre conduzia Fanny não aguardava por ela na saída. Então ele a seguiu pela rua na direção do Largo do Machado, acreditando que não estava sendo notado. No entanto, ao parar um táxi, Fanny voltou-se para trás e convidou Abel a entrar com ela no carro. Logo estavam se beijando loucamente. Até que o motorista resmungou qualquer coisa e o casal foi obrigado a se controlar. Certo momento, para sua surpresa, Abel entendeu que Fanny estava propondo que passassem a noite num hotel. Ele já estava pedindo ao motorista que se dirigisse para o Catete, quando Fanny corrigiu:
“Não esta noite, mas uma outra noite!”
Ela não era boba. Estava em período fértil e só iria dormir com o Romeu às vésperas de ficar menstruada. Gato escaldado tem medo de água fria. Pílula anticoncepcional ela também não iria tomar porque podia dar câncer. Camisinha podia furar. Dali uma semana seria o momento ideal.
“Quando o nosso dia chegar, vamos tomar um trem na Central do Brasil e passar a noite em algum hotelzinho do Méier ou do Encantado”, decretou Fanny.
Abel achou meio absurda a proposta de pegaram trem na Central. Seria muito mais fácil se hospedarem em algum hotel do Catete. Mas Fanny expusera o plano com tanta determinação que Abel achou melhor não dizer nada: não quis correr o risco de perder o que já tinha ganho.
Nisso, o táxi já estava chegando na Avenida Atlântica e os dois se separaram: Fanny seguiu para o Leme, enquanto Abel foi andando nas nuvens pelo calçadão de Copacabana.
E assim foi que no domingo que se seguiu à estréia da peça, na cena final em que Julieta se suicida sobre o cadáver de Romeu, Fanny sussurrou para Abel: “É hoje.”
Ao chegarem à Central do Brasil, ela disse que queria ter uma conversa séria com ele e o puxou pela mão até a mesa de um botequim infecto. Depois de entornar uma caipirinha, ela explicou:
“Vou te contar uma história que ninguém sabe. Na verdade, eu não sou filha daquele casal de velhos. Ou melhor, sou filha adotada. Antes, eles tiveram duas filhas que morreram num campo de concentração. E depois não puderam ter mais filhos. Não sei direito, mas parece que ele foi capado pelos nazistas. Então eles resolveram adotar uma criança abandonada, que era eu. Tenho uma lembrança muito vaga de quando eu tinha três ou quatro anos. Junto com minha mãe eu ficava mendigando numa escadaria junto a uma estação de trem. Outro dia eu vi na televisão umas imagens da estação do Encantado, acho que é lá que a gente ficava. Me lembro da passarela sobre os trilhos, do barulho do trem, do povão andando pra lá e pra cá. Quero descer nas estações e ver se reconheço o lugar. Do meu nome eu não me lembro, mas minha mãe era chamada de Joana Cu.”
Naquela noite eles tomaram um trem quase vazio e ficaram abraçados, em silêncio, vendo passar as imagens de um Rio de Janeiro que não se vê em cartão-postal e que eles desconheciam. Saltaram no Encantado, mas Fanny não reconheceu o lugar onde fora criança. Já era mais de meia-noite e resolveram entrar num hotelzinho vagabundo perto da estação. Não conseguiram dormir. O desejo de um pelo outro sobrepujava tanto o sono quanto o sangue da menstruação, que empapou o lençol puído e o colchão furado.
Manhã cedo, prosseguiram a viagem na direção da Baixada Fluminense, mas à medida que o trem foi se aproximando da estação seguinte, que era Piedade, Fanny apertou com força a mão de Abel e o puxou pra fora do vagão. Em cima da passarela que atravessava os trilhos, ela parou e se debruçou na amurada: reconheceu, lá embaixo, o bar onde comia pão com manteiga e, mais adiante, a marquise onde dormia. Uma multidão caminhava apressada pela passarela de um lado para o outro e, de repente, Fanny teve a impressão de que iria dar de cara com a mãe. Depois de tanto tempo, ela ainda estaria viva? Ou teria morrido antes dela ter sido adotada?
Essa foi a única vez que fizeram amor. Mas alguns meses depois, numa excursão que fizeram a Belo Horizonte para uma única apresentação do espetáculo, sentaram-se juntos no ônibus. Durante a noite, enquanto todos dormiam, eles ficaram se tocando com a mesma paixão de sempre. E Fanny acabou limpando nos cabelos as mãos cheias do amor de Abel.
Agora, no último dia da apresentação da peça, no Teatro Maison de France, Fanny tinha ido embora sem ao menos se despedir. Abel tomou um ônibus para Copacabana e se dirigiu ao “Max”, um barzinho estreito e comprido situado na praia, debaixo da Galeria Alaska, onde algumas vezes o pessoal do grupo costumava se reunir. Talvez Fanny tivesse ido para lá. Dito e feito. Lá estava ela, numa mesa de fundo, junto com um fotógrafo americano. Em outras ocasiões - o grupo reunido em duas ou três mesas - o tal americano ficara ciscando ao redor de Fanny, conversando com ela em inglês, despertando assim um ciúme feroz em Abel. O diabo da timidez impediu que Abel entrasse no bar e se aproximasse da mesa onde o casal conversava animadamente. Parado na calçada como um idiota, diante do bar superlotado, ele tentou chamar a atenção da moça. Será que ela não via, ou fazia que não via, os seus gestos desesperados? Depois de um tempo, saiu de dentro do bar um sujeito grandalhão, meio alcoolizado, que se dirigiu a Abel de maneira agressiva:
“O que tá havendo, camarada? Tá vendendo droga?” Em seguida, o sujeito exibiu uma carteirinha identificando-se como detetive da policia e concluiu: “Vamos lá na Delegacia! Você vai ter que se explicar!”
Cada vez mais assustado, Abel tentou se justificar, mas o policial agarrou-o pelo braço e –suprema humilhação! - o conduziu através da Galeria Alaska até a 13ª Delegacia, ali perto, do outro lado da Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
Diante de um grande tabuleiro de xadrez, o delegado de plantão – que logo se tornaria um famoso escritor - estava entretido em jogar uma partida consigo mesmo. O detetive aproximou-se trazendo Abel e foi logo dizendo sem a menor cerimônia:
“Doutor, peguei este marginal em atitude suspeita, vendendo droga lá na praia.”
O delegado continuou olhando as peças de xadrez durante algum tempo. Depois encarou o detetive com desagrado e disse:
“Miguelão, você tá bêbado.” Finalmente olhou para o aterrorizado Abel, perguntando:
“E você, rapaz, sabe jogar xadrez?”
Abel mal conseguiu balançar a cabeça sinalizando que sim.
“Qual é o lance que você daria se estivesse jogando com as pretas?”, perguntou o delegado.
Abel examinou o jogo, e depois apanhou um cavalo preto, pulou duas casas à esquerda e uma em frente, abatendo um peão branco. Então o delegado decretou:
“Vá pra casa curar o seu porre, Miguelão. E você também pode ir embora, rapaz. Marginal não sabe jogar xadrez.”
Abel voltou depressa ao “Max”, mas Fanny não estava mais lá. Depois desse dia, ela desapareceu, e os dois só foram se encontrar mais uma vez uns trinta anos mais tarde.

Abel estava fazendo um filme em São Paulo. Determinada sequência deveria ser filmada nos jardins de uma elegante mansão, onde aconteceria uma festa noturna com dezenas de figurantes. A equipe de produção acabou conseguindo uma propriedade no Morumbi, com a condição de que a filmagem durasse só uma noite, que se usasse apenas o jardim e que ninguém entrasse na casa.
Lá pela meia-noite, depois de duas ou três cenas rodadas, entrou pela alameda principal um carrão importado, de onde saiu um casal. Abel e o diretor do filme, que ensaiavam a próxima cena, foram interrompidos pela aproximação do casal que se apresentou como proprietários da mansão. Abel logo reconheceu Fanny, agora uma cinquentona elegante e ainda bela. Como sempre, comportaram-se como dois estranhos. O marido dela, um italianão simpático, fez questão de dizer que estava feliz por colaborar com o cinema nacional. E Fanny comentou que, muitos anos atrás, tinha tido uma experiência teatral fazendo o papel de Julieta.
“Agora, se retornasse ao teatro, gostaria de interpretar a maluca Lady Macbeth”, concluiu sorrindo.
Depois o casal se retirou, e Abel pensou consigo mesmo que, mesmo não sendo tão velho, talvez já estivesse em condições de encarnar o amargo Rei Lear.

sexta-feira, 26 de março de 2010

AS CURVAS DA ESTRADA DE SANTOS

“Se você pretende saber quem eu sou, eu posso lhe dizer.
Entre no meu carro da Estrada de Santos e você vai me conhecer.”
Roberto e Erasmo Carlos
.

Claro que o planejado fora ir para o Guarujá pela Rodovia dos Imigrantes, mas depois da reta do pedágio policiais rodoviários fechavam a estrada, obrigando Antônio a desviar para a direita na direção da Anchieta. A viagem, que prometera ser tranqüila, trazia essa pequena surpresa desagradável: a série de curvas perigosas à beira de precipícios.
“Seria melhor não ter vindo”, pensou Antônio com os seus botões, sem externar seu arrependimento à moça que o acompanhava e que tanto insistira na viagem. Bem feito! Como concedera em agradá-la, agora era obrigado a enfrentar esse contratempo.
Dono de uma conhecida agência de publicidade, Antônio estivera supervisionando a filmagem de um comercial até o início da noite daquele sábado, quando o ideal teria sido viajar na sexta-feira e assim aproveitar todo o fim de semana no apartamento do Guarujá.
Já era a quarta ou quinta vez que ele fazia essa viagem com a moça e, por isso, ela estava tendo a impressão de que estavam namorando pra valer. Ele, nem tanto. Cioso de sua liberdade, sempre desconfiava que as jovens modelos que o assediavam quisessem fazer carreira às suas custas. A moça que agora o agora o acompanhava tinha exatamente esse perfil, no entendimento de Antônio.
Na saída de São Paulo, conversaram sobre o assunto do dia: a descoberta do pré-sal e o progresso que o investimento econômico iria trazer para a Baixada Santista. Depois a conversa derivou para a violência que tinha tomado conta do Guarujá. Ele comentou que a cidade estava cada vez mais cercada de favelas, mas que o problema já vinha de longe. Contou que uns quinze anos antes, ele tinha uma casa na Praia da Enseada, que nessa época era um lugar bastante deserto. A casa ficava distante do mar e próxima do morro, onde já existiam alguns barracos de madeira. Certo dia, ele e a ex-mulher saíram de carro pra fazer compras no super-mercado e a empregada ficou tomando conta do garotinho, filho deles, que estava dormindo no quarto. Logo depois da partida dos patrões, a empregadinha quase morreu de susto ao ser agarrada pelas costas por dois negrões. “Dois crioulos mais pretos do que eu!”, comento a menina. Queriam dinheiro, jóias! Onde estava o dinheiro dos patrões? Ela entregou alguns trocados, que estavam guardados numa gaveta, e mais algumas bijuterias sem valor. Então os dois assaltantes foram embora, mas antes avisaram que, se ela avisasse o patrão daquela visita, eles voltariam e matariam todo o mundo que estivesse dentro da casa. Segundo a informação de um vizinho, os bandidos ficavam no alto do morro observando o movimento dos moradores, aproveitando-se da ausência deles pra invadirem as casas.
“Vendi a casa na semana seguinte”, concluiu Antônio.
Durante toda essa narrativa, a moça manteve o rosto voltado para o outro lado, como se observasse a paisagem escura que corria pela sua janela. No silêncio que se seguiu, Antônio começou a cismar que a moça tinha ciúme do seu passado. Bastava ele contar qualquer passagem de sua vida com a ex-mulher pra que a moça ficasse emburrada.
Tentando quebrar o gelo que se instalara dentro do carro, Antônio perguntou o que já sabia: “E como foi o assalto que vocês sofreram lá no Guarujá?”
“Eu já te contei, não lembra?”, respondeu ela com má vontade. “A filmagem acabou na praia de madrugada. A produção era uma merda e eu fui obrigada a pegar uma carona com a equipe técnica. Um idiota mandou parar o carro pra ir urinar atrás de uma árvore e fomos assaltados por um sujeito que nos apontou um revólver. Ele levou a câmera e a maleta com todo o material que a gente tinha acabado de gravar. Só isso.”
Em seguida, a moça ligou o rádio do carro, dando o assunto por encerrado.
Alguns minutos depois, desciam a serra. Antônio redobrou sua atenção na estrada porque baixou sobre o carro uma cortina de neblina e as primeiras curvas da estrada de Santos começaram a surgir à sua frente. Entretanto, como o tráfego era mínimo na passagem do sábado para o domingo, ele mal reduziu a velocidade do carro.
Veio-lhe à lembrança a música do Roberto Carlos e ele começou a cantá-la com voz desafinada, competindo com o som do rádio. A moça, que tinha a desculpa de não ter mais do que dezenove anos, comentou: “Já ouvi essa música. De quem é mesmo? Do Caetano?”
Antônio fez que não ouviu a pergunta e acelerou o carro mais um pouco.
“Vai mais devagar que eu tenho medo”, pediu a moça.
De repente, depois de uma curva fechada, Antônio viu a sua frente um ônibus encostado na mureta de pedra. Ele ainda conseguiu reduzir um pouco a velocidade do carro, mas, ao passar ao lado do ônibus, um policial fez sinal pra que ele parasse. Só faltava agora receber uma multa! Ele encostou o carro e ficou esperando pelo pior.
“Estão indo pra onde?”, perguntou o policial.
“Guarujá”, respondeu Antônio, crente de que iria ser achacado como tantas outras vezes.
“Acontece o seguinte, meu amigo: o ônibus quebrou e tem aí um casal com um bebê que tá passando mal. O senhor leva eles até o Guarujá?”
Apanhado de surpresa, Antônio não conseguiu inventar nenhuma desculpa pra se livrar daquela missão. Concordou em dar carona ao casal. Logo deu pra perceber que se tratava de gente muito humilde, talvez nordestinos, talvez favelados. Deviam ter no máximo uns trinta anos. A mulher carregava o bebê enrolado nuns panos pobres e o marido trazia na mão uma mamadeira vazia – e esta era a única bagagem de que dispunham. O marido mal sussurrou um “boa noite”, enquanto se acomodava com a mulher no banco traseiro.
E a viagem prosseguiu em completo silêncio, apenas quebrado pelo som do rádio. Não havia diálogo entre o banco da frente e o banco de trás.
A moça desligou o rádio quando o bebê começou a chorar, talvez o ruído o estivesse incomodando. Mas o bebê continuou chorando, enquanto os pais sussurravam frases incompreensíveis.
E o berreiro da criança prosseguia, irritando Antônio cada vez mais. Lembrava-se das noites em que fora obrigado a passar em claro por causa de seu filho, um bebê chorão de marca maior. Com algum esforço, vencendo a dificuldade de penetrar naquele outro universo, Antônio olhou pelo espelho retrovisor e viu a mãe sufocando o seu próprio choro abraçada ao filho.
“O que é que ele tem?”, perguntou a moça virando-se para trás.
“Não sei”, respondeu o pai. “Começou a vomitar na viagem.”
“Deve estar desidratado”, disse a moça, apanhando a garrafa de água mineral que tinha sobre o painel do carro e a entregando ao pai. A mãe preparou a mamadeira com água, que o bebê aceitou, suspendendo o choro.
Aí o carro já estava entrando na cidade, e a moça disse: “Vamos deixar vocês no pronto-socorro. Essa criança precisa ser medicada.”
Como ninguém respondesse nada, Antônio manobrou o carro para a esquerda, na direção da Enseada, onde ficava o pronto-socorro municipal, e não à direita, que os conduziria de imediato ao seu apartamento na Praia das Asturias. Outra aporrinhação!
Nisso o sinal fechou e Antônio automáticamente parou o carro, quando poderia ter avançado sem nenhum perigo de acidente naquela hora tardia. Então, como um raio, surgido do nada, Antônio sentiu uma coisa fria encostar na sua orelha esquerda. Virou o rosto e viu um rapaz magrinho atrás de um revólver. Ficou gelado, não conseguiu dizer nada. Ao seu lado, a moça gemeu e afundou no banco.
“Passa a grana, o relógio, o celular, passa tudo, tio!”, disse o magrinho, tremendo a arma no rosto apatetado de Antônio.
Aí então, do banco de trás, o pai do bebê interveio: “Zé, é o Ranulfo!” E aproximando o rosto da janela do carro, prosseguiu: “É o Ranulfo, Zé! Libera aí, meu irmão. O pessoal aqui é gente boa. O Júnior tá passando mal. Tão levando ele pro pronto-socorro.”
O assaltante baixou a arma e se afastou na direção das trevas.
Antônio tocou o carro e depois de algumas quadras, já mais calmo, perguntou: “Aquele sujeito era seu amigo?”
“Não. Era meu irmão mesmo. É bom menino, mas se meteu com droga, perdeu o emprego de gari e agora deu no que deu. Já levamos ele pra igreja, o pastor arrancou o demônio de dentro dele, mas depois voltou, não adiantou nada.”
Depois que o casal ficou no pronto-socorro, Antônio dirigiu o carro para o centro da cidade. Ainda na Enseada, à sua direita, ele examinou o local onde tivera a sua casa. Quase não reconheceu o espaço, tão diferente do que fora vinte anos antes. No lugar de sua antiga casa existia agora um condomínio com prédios altíssimos e, ao fundo, o morro transformara-se numa enorme favela.
“Os gatos, em cima do morro, observando a ratazana do asfalto, prontos pra dar o bote”, pensou Antônio, sem comentar nada com a moça. Ele desconfiava que, se o assunto voltasse a ser a casa da Enseada onde vivera com a ex-mulher, tal lembrança poderia dar origem a uma “discussão da relação” capaz de varar a noite, e ele estava muito cansado.

quinta-feira, 4 de março de 2010

HOPALONGO

“Andar, companheiros, levar por aí afora,
Para os sumidouros do vácuo sem fundo,
Os cacos e entulhos da fábrica mundo.”

Goethe, em “Fausto”



Era uma cidade vazia, um bairro desconhecido. E caia uma garoa fria de antigamente. As ruas de terra tinham virado um lamaçal cinzento que me sujava os sapatos e a barra das calças. Por isso eu caminhava com dificuldade tentando voltar para a casa em que estava hospedado. Além do mais, anoitecia e foi me dando um desespero por não encontrar o meu destino. O fato é que não sei como e nem porque tinha chegado até ali.
Debaixo de um telheiro avistei dois rapazes que conversavam enquanto fumavam o mesmo cigarro.
“Por favor, onde fica a rua tal?”, perguntei vencendo o meu desconforto.
Riram na minha cara. Depois um deles explicou:
“Você pega a primeira rua à direita, depois a segunda à esquerda...”
“Não”, interrompeu o outro, “pega a terceira à esquerda. É essa!”
Agradeci a informação e segui em frente, tendo a impressão de que eles ficaram rindo às minhas costas. Certamente eles se divertiam com o meu estado lastimável ou com a informação errada que tinham me dado.
Em todo caso, como imaginei que eles estivessem me observando, fosse ou não fosse gozação, dobrei a primeira rua à direita. Acabei encontrando um velho apoiado atrás de uma cerca de madeira. Debaixo de um guarda-chuva, ele parecia observar com olhos de coruja assustada o movimento da rua que era nenhum.
“Por favor, o senhor sabe onde fica a rua tal?”, perguntei.
“Eu não sei de nada”, respondeu o velho, “mas, se o senhor dobrar a próxima rua à direita, vai encontrar uma casa com um hopalongo na frente. Peça informação nessa casa. Ali reside o morador mais antigo do bairro, um velho mais velho do que eu, e ele sabe de tudo.”
“O senhor disse o quê? Um hopalongo?”
“Isso mesmo, um hopalongo!”, repetiu o velho, afastando-se depressa. Na porta do casebre, ele conseguiu fechar o guarda-chuva que quase lhe fugia das mãos engolfado pelo vento.
Fiquei ali parado debaixo da garoa, mais sozinho do que nunca O que seria um hopalongo? Alguma espécie de varanda na frente da casa? Algum modelo de automóvel? Um balanço de corda pendurado numa árvore? Alguma raça de cachorro vigilante? Um certo tipo de muro? Uma cerca viva? Que diabo seria um hopalongo? Aquela palavra me soava familiar, mas significando o quê?
Foi então que me lembrei de Hopalong Cassidy, o herói dos antigos faroestes da minha infância, a quem a molecada, inclusive eu, chamava de “Hopalongue Casside”. Por certo, não seria ele que eu iria encontrar nessa minha caminhada.
Enfim, não encontrei nada que pudesse ser um hopalongo e acabei me perdendo dentro da noite que me envolveu rapidamente.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

ALÉM DA ARREBENTAÇÃO

Para Will Damas, dramaturgo e poeta anarquista.


Acabo de ler no jornal que Vivi morreu afogada no Posto Cinco de Copacabana. Ela e um homem de quarenta anos, solteiro (não era o marido dela, portanto), foram nadar além da arrebentação e morreram afogados. Segundo testemunhas, o casal chamava a atenção porque estava aos beijos e abraços dentro d’água. Por incrível que pareça, os dois corpos foram retirados do mar ainda abraçados.
Ir além da arrebentação é muito perigoso. Só quem sabe nadar muito bem é que se atreve a tanto. Esse namorado de Vivi não era como eu: devia ser um bom nadador. Fico imaginando como teria sido a morte deles: ela cansou, sentiu câimbras; ele tentou salvá-la e também se afogou. Fim.
Essa notícia me faz lembrar o dia em que conheci Vivi, faz uns trinta anos. Nunca vou esquecer o que aconteceu porque, naquele dia, por uma estranha coincidência, eu também estive a ponto de morrer afogado no Posto Cinco.
Ela era uma menina magricela, ruivinha e sardenta, que sentou ao meu lado na areia e a quem eu ofereci um sorvete. Quando eu entrei no mar, ela veio atrás, me ultrapassou e ficou boiando lá adiante na arrebentação das ondas. Não sei nadar, mas queria me exibir pra ela e fui em frente até ficar com água na altura dos ombros. A onda grandona vinha, eu pulava no balanço dela. Quando voltava a tocar com o pé no fundo, a cabeça já estava fora d’água. E assim ia me mantendo junto de Vivi, segurando sua mão por debaixo d’água porque ela me avisou que seu irmão mais velho estava jogando futebol na areia e, se visse ela namorando, iria contar ao pai – que era um militar troglodita – e aí adeus praia.
De repente, me apavorei. Não dava mais pé por mais que me espichasse. Comecei a bater pernas e braços como um louco. Vivi conseguiu voltar pra onde dava pé, enquanto eu me desesperava engolindo água salgada. “Vem pra cá, vem!” – ela gritava assustada na minha direção. Ir pra junto dela era o que eu mais queria naquele momento, mas de que jeito¿ Nisso passou por mim um garotinho flutuando numa bóia e eu, já sem fôlego, no desespero, me agarrei no calção dele. Então o moleque começou a gritar comigo, me chamando de filho da puta, já meio de bunda de fora. Aí finalmente veio uma correnteza e me empurrou na direção da praia junto com o garoto. “Me larga, desgraçado! Brincadeira mais besta!” – ele reclamava ainda quando eu o soltei. Com muito custo fui saindo d’água, Vivi me puxando pela mão. “Teu irmão pode ver!” – avisei. “Você é mesmo um bocó!” – ela respondeu. “Quase morre afogado, não se agüenta em cima das pernas e ainda fica preocupado com o meu irmão! Ele que vá pro inferno!”
Havia mais: quando chegamos ao montinho de areia onde estavam os nossos pertences, tinham roubado o meu radinho de pilhas, que eu tinha comprado com tanto sacrifício, e um relógio de pulso que Vivi tinha herdado da avó dela. “É muito azar num dia só!” – falei pra ela. “Se eu pego o lazarento que roubou o teu relógio, encho o safado de porrada!” “Deixa pra lá! O que importa é que você não morreu afogado” – ela tentou me consolar.Coisas dramáticas como essas – o meu quase afogamento e o roubo dos nossos objetos de estimação – envolvem as pessoas. Eu tinha a impressão de conhecer Vivi há um século.
Descansamos um pouco na areia, um sol violento queimando pra valer, e depois fui levá-la até a casa da tia, que morava numa transversal da Nossa Senhora de Copacabana. A entrada de banhistas era dentro da garagem e ficamos dando um amasso lá junto do elevador, enquanto não passava ninguém. Beija daqui, beija dali, comecei a baixar a parte de cima do maiô dela, quando me aparece o zelador do edifício. Foi um Deus nos acuda! A gente se soltou, ela ajeitando o maiô, eu virando as costas para o homem, naquele estado. O empata-foda arranjou um paninho e começou a limpar os carros que estavam por perto só pra sacanear a gente. O jeito era ela entrar no elevador e eu dar o fora – era o que o zelador estava querendo nos dizer com aquelas esfregadelas nos para-brisas. “Sujeito mais idiota!” – falei no ouvido dela. “Vai ver nunca fez o que a gente tá fazendo e ficou com inveja. Essa raça de zelador e porteiro de edifício é tudo recalcado.” Ela então me puxou pela mão na direção da saída, me convidando pra tomar uma coca-cola no bar da esquina.
No meio do caminho, comecei a pensar: “Vou arriscar tudo de uma vez. Se colar, colou; se não colar, azar é o meu.” Já estávamos quase chegando ao bar e eu ainda criando coragem pra fazer a minha proposta. “Por que não vamos tomar coca-cola lá em casa¿” – despejei de uma só vez sem muita convicção. Ela pareceu não entender o que eu tinha dito (ou talvez estivesse ganhando tempo pra analisar melhor o meu convite) porque deu alguns passos sem reagir e depois perguntou com toda a naturalidade: “O que foi que você disse¿” Repeti, audacioso: “Por que não vamos tomar coca-cola lá em casa¿ Moro aqui pertinho, no fim da Sá Ferreira.” Ela andou mais um pouco e eu fui atrás, esperando tudo, que ela apressasse o passo e fosse embora em silêncio ou que, antes de ir, ela me aplicasse uma bolacha. “Bem que a gente podia, né¿” – disse ela finalmente parando na beira da calçada e me olhando na cara, como se me desafiasse. “Claro!”- baixei os olhos e continuei a caminhar sem saber pra onde estava indo. “Então vamos. Onde é mesmo o teu apartamento¿”- ela falou passando a mão na minha cabeça como se eu fosse criança.
Assim fomos para o meu apartamento (felizmente os dois caras que dividiam comigo o sala-quarto conjugado não estavam lá) e tudo correu bem até o ponto em que havíamos chegado na porta do elevador, quando o bendito do zelador nos interrompera. Agora, quando seguíamos adiante, ela começou a respirar com dificuldade, ronronando como uma gata. Isso ainda me deixou mais excitado. Mas logo percebi que interpretara mal os gemidos da garota. Ela estava passando mal e me pediu que eu fosse correndo até uma farmácia comprar um remédio contra asma: era muito comum sofrer ataque de asma quando se emocionava além da conta. Recebi um balde de água fria.
Me vesti correndo, fui à farmácia e voltei num segundo, apavorado com a idéia de Vivi morrer no meu apartamento, com toda a complicação que podia surgir daí. Mas ela logo voltou ao normal, depois de dar umas bombadas na garganta com o aparelho que viera dentro da caixa de remédio. Mais tarde, eu a levei de táxi pra casa, na Tijuca, e gastei uma nota preta. Voltei pra Copacabana de ônibus, preocupado com a minha situação financeira.
Muita coisa aconteceu depois. Sempre nos encontrávamos na praia, sob o olhar vigilante do irmão. Uma vez ela veio ao meu apartamento com um violão e me cantou um samba bossa-nova muito bacana que ela disse que tinha composto em minha homenagem, falava em onda do mar, areia, sol, verão, essas coisas. Ela tocava o violão apoiando o pé em cima do meu sofá-cama e acabou furando o estofamento com o salto ponteagudo do sapato, fiquei puto da vida e quase mandei ela embora.
Durante esse tempo todo, eu continuava mantendo na gaveta do armário o tal remédio contra asma. E quando a gente ia pra cama, a bombinha sempre ficava ao alcance da minha mão, porque à certa altura, quando ela se emocionava o bastante, lá vinha aquele rosnado de gata, e eu era obrigado a me conter e lhe aplicar meia-dúzia de bombadas na garganta. Era até divertido.
Vivi desapareceu durante as férias de verão e depois voltou, vestindo o seu uniforme de normalista, com um presente pra mim, um copo onde estava escrito: “Estive em Poços de Caldas e pensei em você!” Depois de algum rodeio, acabou dizendo que estava grávida por minha causa. Não acreditei muito, ela ficou zangada e foi embora gritando que nunca mais queria ver a minha cara. Duas semanas mais tarde, nos encontramos dentro de um ônibus e ela veio comigo ao meu apartamento. Mas não aconteceu nada dessa vez porque, antes do ataque de asma, ela começou a sentir outro tipo de incômodo: tinha feito um aborto poucos dias antes. Pra encurtar a história, acabamos discutindo e brigando. Falei que por causa dela eu tinha perdido o meu radinho de pilhas e o meu sofá-cama estava furado.
Depois desse dia, eu nunca mais a vi. Joguei fora o tal remédio contra asma, inclusive porque já devia ter perdido a validade.
Alguns anos depois fui abordado , na praia, por um sujeito muito simpático. Era o tal irmão dela. Me informou que ela tinha se casado com um capitão do exército e que estava esperando um segundo filho. Pra mim, ela continuou sendo a imagem comovente de uma ruivinha com pele de ferrugem, no seu uniforme de colégio de freiras.
Agora essa notícia no jornal... Pensando bem, o mais provável é que Vivi tenha se emocionado demais, além da arrebentação, levando consigo pro fundo do mar – igual uma sereia – o homem que não pudera livrá-la de uma crise de asma.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

ALGUMA MEMÓRIA (4)

“O que finalmente eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem devo ao futebol.”
Albert Camus

Pela época do meu nascimento, meu avô Emílio tinha um time de futebol, em que jogavam os homens da família e alguns vizinhos. O mais curioso de tudo era o nome do time: “Os Onze Cardeais”. Usavam um gorrinho vermelho na cabeça, possivelmente em homenagem ao pássaro cardeal e não à púrpura religiosa dos príncipes da igreja. Lembro-me apenas dos tais gorrinhos vermelhos que, naquele tempo, eram peças indispensáveis ao uniforme dos futebolistas, que não queriam desmanchar o penteado ou serem atrapalhados pelas longas melenas.
Mas os dois grandes times amadores do bairro de São João eram o “Marquês do Alegrete”, com sede social na Rua Augusto Severo, quase na esquina com Benjamin Constant, e o “Farroupilha”. As partidas entre os dois times rivais geralmente acabavam em conflito generalizado. Acompanhado de um parente mais velho, eu gostava de assistir a essas disputas, que ocorriam em alguns campos da várzea próximos ao aeroporto, especialmente pra ver um beque central chamado Batoque, que, baixinho como o apelido sugere, costumava dar um salto mortal e rebater a bola com os calcanhares, exatamente como tantos anos mais tarde vimos o goleiro Higuita fazer. Outra jogada inusitada a que assisti uma vez foi no campo do Fiatece, no bairro dos Navegantes: um goleiro defendia pênaltis encostado a uma trave; quando o adversário chutava a bola, ele corria na direção da outra trave, agitando braços e pernas, e assim confundindo o cobrador.
Nesses gramados – e “gramados” é força de expressão, pois o que mais havia era terra batida – vi jogar um elegante centro-avante negro chamado Breno Mello, que mais tarde, atuando profissionalmente no Rio de Janeiro (mais precisamente, como reserva no Fluminense), foi convidado pelo diretor francês Marcel Camus a estrelar o filme “Orfeu Negro”, grande sucesso comercial na época. Depois disso, ele fez mais um ou dois filmes. Diz que nos últimos anos de vida, ele ganhou algum dinheiro exibindo uma cópia do “Orfeu Negro” e apresentando-se pessoalmente em cinemas do interior do Rio Grande.

Anos mais tarde, na década de 60, numa das casas do terreno de meu avô, morou um moleque de cabelos compridos chamado João Batista. Vivia ali com a mãe, que trabalhava fora o dia inteiro como enfermeira. Por isso, cabia a minha tia Luci tomar conta do moleque, que era endiabrado. Na década seguinte, ele se tornou conhecido como Batista, que juntamente com Paulo Roberto Falcão e tantos outros craques formaram o grande time do Internacional. Hoje, Batista é comentarista esportivo do canal “Sport TV”.
No “Marquês do Alegrete” brilhava o capitão do time, um center-half que jogava e comandava sua equipe com muita classe e que tinha o sugestivo nome de Napoleão. Casado com uma filha do presidente do clube, ele tinha o apoio das mulheres da família e da pequena torcida feminina, que gritavam em coro: “Napô! Napô! Napô!” Já o half-esquerdo, que devia ter uns 25 anos de idade, também era o treinador do time infantil do “Marquês”. Treinador também é força de expressão: ele apenas escalava o time e nos acompanhava durante os jogos. Havia algum comentário de que o sujeito gostava de bolinar os garotos nas sessões noturnas do cine Rosário, e a nossa tática era ficar longe dele.
O infantil do “Marquês” jogava de pés descalços e era formado por meninos entre dez e treze anos de idade. Eu jogava na meia-direita. Na ponta-direita tinha o Benito Marquesin, veloz e habilidoso. Tinha um enorme senso de humor e gostava de apelidar todo mundo. Chamava meu tio Breno Malta - gremista apaixonado pelo futebol, ainda hoje capaz de correr atrás de uma bola - de Tio Bubu. Benito era sobrinho do campeão gaúcho de ciclismo, Jovino Trombini, fato que o deixava muito orgulhoso.
O centro-avante (ou center-forward) era o Chico. Malicioso e esperto, ele vendia balas no cinema Colombo, na Avenida Cristóvão Colombo, onde assisti a muitos filmes da Metro sem pagar entrada devido a sua interferência.
Como zagueiros revezavam-se três meninos mais fortes: Mário, Aldoíno Zilio e Antoninho Além. Aldoíno acabou se profissionalizando como zagueiro do Novo Hamburgo e depois como treinador físico do Grêmio. Antônio Além não brincava em serviço: tenho um calombo no joelho esquerdo, que me impede de ficar ajoelhado por muito tempo, devido a uma entrada assassina que ele me deu. Foi meu colega no colégio dos padres, o São João Batista, e uma vez, numa aula de matemática, disse uma coisa interessante: na verdade ele deveria se chamar “Antônio Além na Segunda Potência”, já que seu pai e sua mãe eram primos e tinham o mesmo sobrenome. Também fazia parte dessa família sírio-libanesa um “brimo”, que todos os sábados à tarde aparecia no bairro carregando uma enorme cesta com os mais variados tipos de doces. Aquilo era uma festa! Mais recentemente, conversando com o jornalista e homem de teatro Edson Nequete, eu soube que, por um acaso do destino, era ele, Nequete, o tal vendedor de doces.
Outra figuraça era o Rui, apelidado de Cobra: mulato esquelético, jogava futebol usando uma reduzida sunga de natação esverdeada, deslocando-se pelo campo de maneira esquisita, como se fosse um réptil. Era engraxate ambulante, vivia em péssimas condições com a mãe adotiva e acabou morrendo de inanição aí pelos quinze anos. Certa vez, o Grêmio ia jogar em Novo Hamburgo, e Rui acabou sabendo que eu, meu pai e meu tio Breno, iríamos de carro até a cidade vizinha assistir ao jogo. Na noite anterior à partida, Rui acendeu uma vela e ficou zanzando diante de minha casa como se estivesse procurando alguma coisa que tinha perdido. Todo mundo preocupado, ele explicou que, realmente, tinha perdido a passagem de trem para Novo Hamburgo e o ingresso antecipado que havia comprado com tanto sacrifício. Compadecido, mesmo sem acreditar na história, meu pai deu carona ao Cobra e pagou o seu ingresso.
Os bailes de carnaval na sede social do “Marquês do Alegrete” eram famosos pela fantástica imoralidade, por isso não eram freqüentados pelas moças e rapazes de família. Quando muito, ficávamos discretamente na calçada pra ver a entrada das mulheres seminuas – e nem tão seminuas assim! Era um grande salão de madeira – o que não é surpreendente, já que a própria sede do Grêmio Porto-Alegrense, em plena Rua da Praia, não passava de um barracão cheio de taças, fotos e medalhas. Esses bailes eram organizados pelo faxineiro do clube, um homossexual rude e musculoso que habitava um quartinho junto ao salão. O único freqüentador desses bailes que eu conheci era o nosso amigo Nezinho, que gostava de nos reportar todas as bandalheiras que ocorriam no salão. Pouco mais velho do que a turma, era metido a malandro: cabelão preto cheio de brilhantina Glostora, calça boca dezoito apertadinha no tornozelo e um pentinho preto, que costumava manejar, em brigas imaginárias e ricamente coreografadas, como se fosse um punhal. No dia seguinte ao baile, a turma de bocós se sentava no bueiro da esquina da Vilela Tavares com Augusto Severo, e Nezinho nos contava como tinha sido a noite passada, que sempre acabava ao nascer do sol com ele e a odalisca transando sobre folhas de jornal, no meio do mato, junto ao campo de aviação.
Esse mesmo Nezinho encerrou sua carreira de malandro quando, certa noite, na frente do cinema Rosário, que ficava à meia quadra da sede do “Marquês”, se desentendeu com um desconhecido. Estava acompanhado de um amigo, um meu xará chamado Ênio, e puxou o seu famoso pentinho preto, que na penumbra passava como se fosse uma faca. O problema foi que o desconhecido puxou uma faca de verdade e saiu golpeando os dois amigos a torto e a direito. Sobrou para o meu xará, que morreu na hora, enquanto Nê passou um mês no hospital entre a vida e a morte, sobrevivendo afinal. O que o salvou foi estar vestindo um sobretudo Camelo, um casacão de pano grosso transpassado na frente, muito usado naqueles invernos.
Aí pelos treze anos, joguei futebol em outro time, o “Maltense”. Marino Boeira e Luiz Folchini, dois meninos que eram vizinhos na Rua Marquês do Alegrete, tinham acabado de fundar esse time. Apesar da origem italiana dos dois, puseram o nome português de “Maltense” porque haviam comprado numa liquidação um conjunto de camisetas que tinha no peito uma cruz de Malta. Aí jogávamos de chuteiras. Além de mim, diversos infantis do “Marquês” participavam da nova equipe, entre os quais, Aldoíno, Benito e Chico. Zeca e Ciro Chamoun, que se formaram comigo no Ginásio São João Batista, eram os novos colegas. Ciro jogava um bolão, era um centro-avante rompedor capaz de marcar muitos gols – ou “golos”, como se dizia.
Além do futebol, Marino e Luiz (colorados doentes!) tinham interesse por cinema e literatura, o que fortaleceu em muito a nossa amizade. Marino colecionava os livros publicados pela editora Mérito, assim acabei lendo “O Egípcio”, de Mika Waltari, “Uma Fábula”, de William Faulkner, “Eurico, o Presbítero”, de Alexandro Herculano, e tantos outros. Já muito politizado - torcia pelo Inter por causa da Internacional Socialista e da cor vermelha - Marino era fã de Sartre e dos grandes escritores russos. Emprestou-me “Os Caminhos da Liberdade”, “ A Náusea”, “Guerra e Paz”, “ Crime e Castigo”, “O Vermelho e o Negro”.
Voltando ao capítulo futebol, meu pai era torcedor do São José, certamente porque residira perto do clube, no Passo da Areia, logo que chegou do Interior. Quando o “Zequinha” fechou as portas, ele se tornou gremista por influência minha e de meu irmão, Evaldo Gonçalves, que mais tarde foi jornalista esportivo da “Zero Hora”. Eu fui gremista desde que nasci, influenciado por dois tios, Breno Malta (com quem jogava bola todos os finais da tarde) e Saturnino Fernandes Borba (que também foi meu padrinho de crisma).
Outro tio meu, tio Paulo, torcia pelo Renner não sei por que cargas d’água. Ele costumava me levar ao estádio do clube, situado na Avenida Farrapos. Lembro-me de ter assistido ali a uma partida entre o “Vasco da Gama” e o dono da casa. No “Vasco”, lembro-me do centro-médio Danilo e do centro-avante Ademir, jogadores da seleção brasileira. Outro craque que me impressionou foi o meia-direita Zizinho. Antes do futebol pela televisão, ver esses jogadores atuando era algo excepcional. Às vezes, conseguíamos vê-los rapidamente através do Canal Cem, que passava nos cinemas. Aí a vibração, tão distante, dos grandes clássicos do Maracanã nos causava uma grande impressão.
No “Renner”, cansei de ver dois jovens jogadores que depois se tornaram conhecidos nacionalmente: o goleiro Valdir de Morais e o zagueiro Paulinho, que logo se transferiu para o “Vasco da Gama”. E quando o “Renner” acabou, tio Paulo virou colorado, um absurdo!
Um fato esportivo que marcou a minha infância – e a de tantos brasileiros! – foi a perda da Copa do Mundo de 1950, que não ouvi pelo rádio porque tinha ido à matinê de domingo do cine Rosário. Quando saí do cinema, o clima de velório pairava no ar, o mesmo estado de choque causado pelo suicídio de Getúlio Vargas, quatro anos mais tarde. No dia seguinte, o avião que levava o time uruguaio de volta pra casa fez uma escala em Porto Alegre. Uma multidão acorreu ao aeroporto. Meu pai conseguiu um autógrafo do meia Juan Schiafino numa nota de dez cruzeiros, que ele guardou pelo resto da vida como lembrança daquele pesadelo.
Outro acontecimento marcante foi quando Tesourinha (Osmar Fortes Barcelos), ex-ponteiro direito do Internacional, depois de passar duas ou três temporadas no “Vasco da Gama”, voltou a Porto Alegre contratado pelo Grêmio. Tesourinha tinha sido o maior ídolo do futebol gaúcho, formando uma dupla infernal com outro jogador negro, o pequeno Adãozinho – a propósito de quem Plínio Marcos me contou uma história interessante: indo a Bauru para fazer uma palestra, o grande dramaturgo foi convidado a conhecer o famoso centro-avante gaúcho, que tinha encerrado sua carreira na cidade e que, agora, trabalhava na cozinha de um restaurante; conduzido até a cozinha, Plínio não conseguiu falar com Adãozinho porque ele estava dormindo dentro de uma panela.
Mestre Tesoura foi o primeiro jogador negro a vestir oficialmente a camisa do Grêmio, e me lembro de tê-lo visto jogar pelo meu time, já com mais de trinta anos, mas ainda com incrível velocidade e domínio de bola, voando pela lateral direita ou cortando enviesado do meio de campo na direção do gol adversário. Imagens Inesquecíveis!
Tesourinha ficou como o meu ídolo esportivo, assim como é o ídolo de tantos colorados que o viram jogar. Em entrevista que vi recentemente, o colorado Luiz Fernando Verissimo também o colocou no mesmo pedestal.
(Continua)

sábado, 9 de janeiro de 2010

ALGUMA MEMÓRIA (3)

“A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas.”
Chico Buarque em “Leite Derramado”.

Pablo Neruda deu um título muito expressivo – e que se presta a diversas interpretações – à sua autobiografia: “Confesso que Vivi”. Já Daniel Filho escreveu “Antes que me Esqueça”, certamente com a preocupação de contar sua vida antes da chegada do deletador Alzheimer.
Outro título autobiográfico muito interessante é “As Amargas Não...”, diário em que o poeta gaúcho Álvaro Moreyra excluía de suas lembranças os momentos amargos. E ele viveu uma vida bastante agitada: poeta, jornalista, cronista, também foi homem de teatro. Tentou sacudir a poeira do teatro nacional na década de 20, fundando com sua mulher, Eugênia Álvaro Moreyra, a companhia “Teatro de Brinquedo”. Também é autor de uma peça de estrutura surpreendente para a sua época, “Adão e Eva e os Outros Membros da Família”, em que mostra personagem cheirando cocaína. Se bem que, naquele tempo, esse era um hábito social bem aceito nas altas esferas.
Claro que não tenho a pretensão de “escrever para a posteridade” estas minhas lembranças. Se algum amigo, parente ou descendente meu se interessar em ler estes retalhos de memória, já me dou por satisfeito. De minha parte, curioso que sou, gostaria que meus antepassados tivessem me deixado algum registro escrito de sua passagem por este mundo.
*
“Apaga a luz, quinta coluna!” – este deve ter sido o primeiro bordão que aprendi em minha vida.
Lá pelo final da Segunda Grande Guerra, quando o Brasil resolveu participar do conflito, houve um treinamento de alerta para a população civil, caso acontecesse um {improvável) ataque aéreo alemão. No início da noite, a Quarta Delegacia de Polícia – que ficava na rua Pereira Franco, a duas quadras da casa de meu avô Emílio – acionava uma sirene estridente que alertava toda a vizinhança. Imediatamente todas as luzes da casa deviam ser apagadas. Ficávamos todos, adultos e crianças, olhando pelas frestas das janelas para verificar se realmente havia um blecaute total. Se houvesse qualquer resquício de luz na vizinhança, sempre ouvia-se um gaiato gritando: “Apaga a luz, quinta-coluna!”
A chamada “Quinta Coluna” correspondia à rede de espiões nazistas que atuavam fora da Alemanha . Luz acesa poderia indicar o alvo para o bombardeio aéreo. Na casa de meu avô havia um cuidado especial em atender à regra do blecaute, pois minha avó tinha receio de ser vítima do preconceito de algum vizinho mais xenófobo. Os Rohden e os Dullius, vizinhos próximos que falavam alemão com minha avó, deviam ter o mesmo tipo de preocupação. Aliás, meu avô, que não tinha nada de germânico, também aprendera a língua através da convivência com a família de minha avó, os Buhl. Minha mãe dizia que, quando criança, só se falava em alemão em sua casa.
No final da guerra, houve racionamento de gasolina, e os veículos passaram a ser movidos à gasogênio, que ficava armazenado em um tubo de aço junto ao motor. Entretanto, como todo mundo, meu pai começou a comprar gasolina no mercado negro a fim de abastecer o seu caminhão. Um grande tonel de metal, meio escondido no fundo do quintal, junto à garagem, servia de depósito para a preciosa gasolina.
E foi atrás desse tonel que tive a minha primeira experiência sexual. Acontece que numa das casas que meu avô alugava veio morar uma menina loura e ranhenta chamada Anita, mais ou menos da minha idade, uns cinco ou seis anos. Nos dias de verão, as mães costumavam dar banho nas crianças dentro de dois tanques de lavar roupa, que ficavam lado a lado no quintal. Eu já tinha visto a menina pelada dentro do tanque, mas não ousara olhar direito porque morria de vergonha. Mas, nesse belo dia de sol, fomos os dois para trás do tal proibido tonel de gasolina, tiramos nossas roupas e ficamos ali examinando detidamente, com direito a toque, tudo o que faltava nela e que sobrava em mim. Nisso, ouvimos passos que se aproximavam e nos vestimos rapidamente. Era minha mãe, que, recuperando-se de uma operação pulmonar, vinha se sentar ao sol a fim de cicatrizar o corte que tinha às costas. Em vez de esperar um tempo, eu e Anita saímos precipitadamente como dois idiotas do nosso esconderijo, sob as vistas de minha mãe, dando a maior bandeira. Adão e Eva esgueirando-se do paraíso cheios de vergonha.
O terreno do meu avô era um universo completo. Em outras duas casas, um tio e uma tia já começavam a formar suas famílias, com filhos menores do que eu. A convivência com os meus tios - por parte de pai e por parte de mãe, eram uns doze tios com quem convivia diariamente – enchiam aquele espaço de surpresa s e descobertas. Nas laterais do terreno, minha avó plantava flores e árvores de fruta: pêra, amora, laranja, maçã, parreiras de uva.
Revejo minha mãe deitada numa espreguiçadeira debaixo de uma parreira: magra e pálida, recuperando-se da terrível tuberculose, ela está lendo um folhetim com estranhas ilustrações de pessoas e ambientes que eu nunca tinha visto antes, que despertam minha curiosidade, certamente europeus em Paris ou Roma no final do século anterior. O que salvou a vida de minha mãe foi – como ela acreditava – uma profunda fé religiosa em Nossa Senhora, aliada ao advento da penicilina e à perícia do médico que a tratou, o Dr. Augusto Maria Sisson. (Quando jovem, esse pneumologista também foi um conhecido jogador de futebol do Grêmio e, depois, do Flamengo, do Rio. Participou, em 1912, da maior goleada gremista, que aplicou 23 a 0 no Sport Club Nacional de Porto Alegre, quando Sisson marcou nada menos que 14 gols - ou “golos”, como diziam os gaúchos naquela época em que o futebol ainda era amador. Com mais de 90 anos, o Dr. Sisson ainda esteve na Amazônia praticando medicina social. Que vida!)
Nos fundos do quintal, havia um enorme espaço para os animais, galinhas, patos, porcos, coelhos, porquinhos-da-índia. E guardando a criação animal, em espaço próprio à frente do xiqueiro e do galinheiro, o Tarzã, um cachorro selvagem que daria o alerta caso um ladrão de galinhas se aproximasse nas trevas da noite.
Certa vez meu tio Vili resolveu pôr em prática um artigo da revista "Seleções do Reader’s Digest", que ensinava como fazer a gestação de pintinhos utilizando-se do calor da luz elétrica. Meu avô aceitou, mas não quis tomar conhecimento da experiência. Aquela modernidade absurda só iria aumentar a conta de luz no final do mês.
Lembro-me de minha irmã Eda, dois ou três anos de idade, balançando uma chaleira velha, dentro da qual estava um pintinho que ela, em sua inocência, acabara de sacrificar. Meu avô ficou furioso. Vejo-me também em cima da carroceria do caminhão de meu pai, jogando pedrinhas nos pintinhos amarelos que ciscam lá no chão. Acabo acertando um coitadinho e corro a enterrá-lo antes que alguém perceba o meu crime.
O terreno vizinho que ficava aos fundos era desabitado. Como nunca tinha sido aterrado, era um banhado que volta e meia se transformava num verdadeiro lago. Certa vez, Clóvis e César, meus primos por parte de pai, que moravam no outro lado da cidade, na Azenha, vieram nos visitar. À vista daquela lagoa, tiveram a idéia de juntar umas madeiras velhas que estavam por ali e construir uma jangada. Feito isso, improvisaram um remo e saímos os três navegando por aquelas águas perigosas. Achei aquela aventura de uma ousadia estupenda. Eu nunca ousara pensar em fazer uma coisa daquelas. Meus primos eram bem mais espertos do que eu. Droga, eu não passava de um bocó! Assim, aprendi com os meus dois primos que eu deveria ser mais audacioso.
Nesse mesmo dia, Clóvis me deu mais uma lição: me ensinou como se dá o nó no cadarço do sapato, com aquelas quatro pontas de igual tamanho.
Tio Nenê, o irmão mais velho de meu pai, tinha mais dois filhos homens, além do Clóvis e do César. Numa fase de crise financeira, ele trouxe a família para morar conosco. Então esses meus primos espertos trouxeram com eles dois verdadeiros tesouros: três caixotes abarrotados de revistas em quadrinho e a coleção completa do Tesouro da Juventude. Foi aí que eu descobri a coisa mais útil e mais bonita criada pelo homem: o livro.
Já em nossa adolescência, depois de muitos anos sem contato, certa noite apareceu em minha casa esse meu primo Clóvis carregando um violão. E deu um show, sob os nossos olhares basbaques. Disse que aprendera a tocar sozinho utilizando-se de um estranho método: durante os bailes do clube, ele, que não podia entrar porque não era sócio, ficava lá na rua tentando acompanhar com seu violão a música da orquestra.
Cantar, vá lá! E minha tia Luci fazia o trabalho de casa cantando tangos e boleros com sua bela voz. Mas tocar um instrumento musical, para meu avô Emílio, era coisa de vagabundo! Por isso, meio apreensivo que meu avô me visse, todos os sábados à tarde eu ia até o portão de um vizinho, um velho sapateiro que - além de ser conhecido como o único espírita kardecista do pedaço – fazia um sarau musical no quintal de sua casa. Ele tocava cavaquinho e fazia-se acompanhar de mais dois músicos: um rapaz que tocava pandeiro e um violonista que também cantava e soprava uma gaitinha acoplada sobre o violão. Era um momento mágico em que desfilavam, ao vivo, todos os grandes sucessos da música brasileira daquela época e do passado.
Foi numa dessas sessões musicais que ouvi pela primeira vez a composição de Dorival Caymmi“Marina”: “Marina, morena Marina, você se pintou...” Ouvindo a letra dessa canção tive uma revelação: percebi pela primeira vez dois sentimentos que me eram desconhecidos: o amor que une um casal e, principalmente, a dor duma coisa chamada ciúme, que pode arrasar com tudo: “Eu já perdoei tanta coisa. Você não arranjava outro igual. Desculpe, morena Marina, mas eu estou de mal. De mal com você.”
(continua)