sexta-feira, 26 de março de 2010

AS CURVAS DA ESTRADA DE SANTOS

“Se você pretende saber quem eu sou, eu posso lhe dizer.
Entre no meu carro da Estrada de Santos e você vai me conhecer.”
Roberto e Erasmo Carlos
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Claro que o planejado fora ir para o Guarujá pela Rodovia dos Imigrantes, mas depois da reta do pedágio policiais rodoviários fechavam a estrada, obrigando Antônio a desviar para a direita na direção da Anchieta. A viagem, que prometera ser tranqüila, trazia essa pequena surpresa desagradável: a série de curvas perigosas à beira de precipícios.
“Seria melhor não ter vindo”, pensou Antônio com os seus botões, sem externar seu arrependimento à moça que o acompanhava e que tanto insistira na viagem. Bem feito! Como concedera em agradá-la, agora era obrigado a enfrentar esse contratempo.
Dono de uma conhecida agência de publicidade, Antônio estivera supervisionando a filmagem de um comercial até o início da noite daquele sábado, quando o ideal teria sido viajar na sexta-feira e assim aproveitar todo o fim de semana no apartamento do Guarujá.
Já era a quarta ou quinta vez que ele fazia essa viagem com a moça e, por isso, ela estava tendo a impressão de que estavam namorando pra valer. Ele, nem tanto. Cioso de sua liberdade, sempre desconfiava que as jovens modelos que o assediavam quisessem fazer carreira às suas custas. A moça que agora o agora o acompanhava tinha exatamente esse perfil, no entendimento de Antônio.
Na saída de São Paulo, conversaram sobre o assunto do dia: a descoberta do pré-sal e o progresso que o investimento econômico iria trazer para a Baixada Santista. Depois a conversa derivou para a violência que tinha tomado conta do Guarujá. Ele comentou que a cidade estava cada vez mais cercada de favelas, mas que o problema já vinha de longe. Contou que uns quinze anos antes, ele tinha uma casa na Praia da Enseada, que nessa época era um lugar bastante deserto. A casa ficava distante do mar e próxima do morro, onde já existiam alguns barracos de madeira. Certo dia, ele e a ex-mulher saíram de carro pra fazer compras no super-mercado e a empregada ficou tomando conta do garotinho, filho deles, que estava dormindo no quarto. Logo depois da partida dos patrões, a empregadinha quase morreu de susto ao ser agarrada pelas costas por dois negrões. “Dois crioulos mais pretos do que eu!”, comento a menina. Queriam dinheiro, jóias! Onde estava o dinheiro dos patrões? Ela entregou alguns trocados, que estavam guardados numa gaveta, e mais algumas bijuterias sem valor. Então os dois assaltantes foram embora, mas antes avisaram que, se ela avisasse o patrão daquela visita, eles voltariam e matariam todo o mundo que estivesse dentro da casa. Segundo a informação de um vizinho, os bandidos ficavam no alto do morro observando o movimento dos moradores, aproveitando-se da ausência deles pra invadirem as casas.
“Vendi a casa na semana seguinte”, concluiu Antônio.
Durante toda essa narrativa, a moça manteve o rosto voltado para o outro lado, como se observasse a paisagem escura que corria pela sua janela. No silêncio que se seguiu, Antônio começou a cismar que a moça tinha ciúme do seu passado. Bastava ele contar qualquer passagem de sua vida com a ex-mulher pra que a moça ficasse emburrada.
Tentando quebrar o gelo que se instalara dentro do carro, Antônio perguntou o que já sabia: “E como foi o assalto que vocês sofreram lá no Guarujá?”
“Eu já te contei, não lembra?”, respondeu ela com má vontade. “A filmagem acabou na praia de madrugada. A produção era uma merda e eu fui obrigada a pegar uma carona com a equipe técnica. Um idiota mandou parar o carro pra ir urinar atrás de uma árvore e fomos assaltados por um sujeito que nos apontou um revólver. Ele levou a câmera e a maleta com todo o material que a gente tinha acabado de gravar. Só isso.”
Em seguida, a moça ligou o rádio do carro, dando o assunto por encerrado.
Alguns minutos depois, desciam a serra. Antônio redobrou sua atenção na estrada porque baixou sobre o carro uma cortina de neblina e as primeiras curvas da estrada de Santos começaram a surgir à sua frente. Entretanto, como o tráfego era mínimo na passagem do sábado para o domingo, ele mal reduziu a velocidade do carro.
Veio-lhe à lembrança a música do Roberto Carlos e ele começou a cantá-la com voz desafinada, competindo com o som do rádio. A moça, que tinha a desculpa de não ter mais do que dezenove anos, comentou: “Já ouvi essa música. De quem é mesmo? Do Caetano?”
Antônio fez que não ouviu a pergunta e acelerou o carro mais um pouco.
“Vai mais devagar que eu tenho medo”, pediu a moça.
De repente, depois de uma curva fechada, Antônio viu a sua frente um ônibus encostado na mureta de pedra. Ele ainda conseguiu reduzir um pouco a velocidade do carro, mas, ao passar ao lado do ônibus, um policial fez sinal pra que ele parasse. Só faltava agora receber uma multa! Ele encostou o carro e ficou esperando pelo pior.
“Estão indo pra onde?”, perguntou o policial.
“Guarujá”, respondeu Antônio, crente de que iria ser achacado como tantas outras vezes.
“Acontece o seguinte, meu amigo: o ônibus quebrou e tem aí um casal com um bebê que tá passando mal. O senhor leva eles até o Guarujá?”
Apanhado de surpresa, Antônio não conseguiu inventar nenhuma desculpa pra se livrar daquela missão. Concordou em dar carona ao casal. Logo deu pra perceber que se tratava de gente muito humilde, talvez nordestinos, talvez favelados. Deviam ter no máximo uns trinta anos. A mulher carregava o bebê enrolado nuns panos pobres e o marido trazia na mão uma mamadeira vazia – e esta era a única bagagem de que dispunham. O marido mal sussurrou um “boa noite”, enquanto se acomodava com a mulher no banco traseiro.
E a viagem prosseguiu em completo silêncio, apenas quebrado pelo som do rádio. Não havia diálogo entre o banco da frente e o banco de trás.
A moça desligou o rádio quando o bebê começou a chorar, talvez o ruído o estivesse incomodando. Mas o bebê continuou chorando, enquanto os pais sussurravam frases incompreensíveis.
E o berreiro da criança prosseguia, irritando Antônio cada vez mais. Lembrava-se das noites em que fora obrigado a passar em claro por causa de seu filho, um bebê chorão de marca maior. Com algum esforço, vencendo a dificuldade de penetrar naquele outro universo, Antônio olhou pelo espelho retrovisor e viu a mãe sufocando o seu próprio choro abraçada ao filho.
“O que é que ele tem?”, perguntou a moça virando-se para trás.
“Não sei”, respondeu o pai. “Começou a vomitar na viagem.”
“Deve estar desidratado”, disse a moça, apanhando a garrafa de água mineral que tinha sobre o painel do carro e a entregando ao pai. A mãe preparou a mamadeira com água, que o bebê aceitou, suspendendo o choro.
Aí o carro já estava entrando na cidade, e a moça disse: “Vamos deixar vocês no pronto-socorro. Essa criança precisa ser medicada.”
Como ninguém respondesse nada, Antônio manobrou o carro para a esquerda, na direção da Enseada, onde ficava o pronto-socorro municipal, e não à direita, que os conduziria de imediato ao seu apartamento na Praia das Asturias. Outra aporrinhação!
Nisso o sinal fechou e Antônio automáticamente parou o carro, quando poderia ter avançado sem nenhum perigo de acidente naquela hora tardia. Então, como um raio, surgido do nada, Antônio sentiu uma coisa fria encostar na sua orelha esquerda. Virou o rosto e viu um rapaz magrinho atrás de um revólver. Ficou gelado, não conseguiu dizer nada. Ao seu lado, a moça gemeu e afundou no banco.
“Passa a grana, o relógio, o celular, passa tudo, tio!”, disse o magrinho, tremendo a arma no rosto apatetado de Antônio.
Aí então, do banco de trás, o pai do bebê interveio: “Zé, é o Ranulfo!” E aproximando o rosto da janela do carro, prosseguiu: “É o Ranulfo, Zé! Libera aí, meu irmão. O pessoal aqui é gente boa. O Júnior tá passando mal. Tão levando ele pro pronto-socorro.”
O assaltante baixou a arma e se afastou na direção das trevas.
Antônio tocou o carro e depois de algumas quadras, já mais calmo, perguntou: “Aquele sujeito era seu amigo?”
“Não. Era meu irmão mesmo. É bom menino, mas se meteu com droga, perdeu o emprego de gari e agora deu no que deu. Já levamos ele pra igreja, o pastor arrancou o demônio de dentro dele, mas depois voltou, não adiantou nada.”
Depois que o casal ficou no pronto-socorro, Antônio dirigiu o carro para o centro da cidade. Ainda na Enseada, à sua direita, ele examinou o local onde tivera a sua casa. Quase não reconheceu o espaço, tão diferente do que fora vinte anos antes. No lugar de sua antiga casa existia agora um condomínio com prédios altíssimos e, ao fundo, o morro transformara-se numa enorme favela.
“Os gatos, em cima do morro, observando a ratazana do asfalto, prontos pra dar o bote”, pensou Antônio, sem comentar nada com a moça. Ele desconfiava que, se o assunto voltasse a ser a casa da Enseada onde vivera com a ex-mulher, tal lembrança poderia dar origem a uma “discussão da relação” capaz de varar a noite, e ele estava muito cansado.

quinta-feira, 4 de março de 2010

HOPALONGO

“Andar, companheiros, levar por aí afora,
Para os sumidouros do vácuo sem fundo,
Os cacos e entulhos da fábrica mundo.”

Goethe, em “Fausto”



Era uma cidade vazia, um bairro desconhecido. E caia uma garoa fria de antigamente. As ruas de terra tinham virado um lamaçal cinzento que me sujava os sapatos e a barra das calças. Por isso eu caminhava com dificuldade tentando voltar para a casa em que estava hospedado. Além do mais, anoitecia e foi me dando um desespero por não encontrar o meu destino. O fato é que não sei como e nem porque tinha chegado até ali.
Debaixo de um telheiro avistei dois rapazes que conversavam enquanto fumavam o mesmo cigarro.
“Por favor, onde fica a rua tal?”, perguntei vencendo o meu desconforto.
Riram na minha cara. Depois um deles explicou:
“Você pega a primeira rua à direita, depois a segunda à esquerda...”
“Não”, interrompeu o outro, “pega a terceira à esquerda. É essa!”
Agradeci a informação e segui em frente, tendo a impressão de que eles ficaram rindo às minhas costas. Certamente eles se divertiam com o meu estado lastimável ou com a informação errada que tinham me dado.
Em todo caso, como imaginei que eles estivessem me observando, fosse ou não fosse gozação, dobrei a primeira rua à direita. Acabei encontrando um velho apoiado atrás de uma cerca de madeira. Debaixo de um guarda-chuva, ele parecia observar com olhos de coruja assustada o movimento da rua que era nenhum.
“Por favor, o senhor sabe onde fica a rua tal?”, perguntei.
“Eu não sei de nada”, respondeu o velho, “mas, se o senhor dobrar a próxima rua à direita, vai encontrar uma casa com um hopalongo na frente. Peça informação nessa casa. Ali reside o morador mais antigo do bairro, um velho mais velho do que eu, e ele sabe de tudo.”
“O senhor disse o quê? Um hopalongo?”
“Isso mesmo, um hopalongo!”, repetiu o velho, afastando-se depressa. Na porta do casebre, ele conseguiu fechar o guarda-chuva que quase lhe fugia das mãos engolfado pelo vento.
Fiquei ali parado debaixo da garoa, mais sozinho do que nunca O que seria um hopalongo? Alguma espécie de varanda na frente da casa? Algum modelo de automóvel? Um balanço de corda pendurado numa árvore? Alguma raça de cachorro vigilante? Um certo tipo de muro? Uma cerca viva? Que diabo seria um hopalongo? Aquela palavra me soava familiar, mas significando o quê?
Foi então que me lembrei de Hopalong Cassidy, o herói dos antigos faroestes da minha infância, a quem a molecada, inclusive eu, chamava de “Hopalongue Casside”. Por certo, não seria ele que eu iria encontrar nessa minha caminhada.
Enfim, não encontrei nada que pudesse ser um hopalongo e acabei me perdendo dentro da noite que me envolveu rapidamente.