segunda-feira, 25 de outubro de 2010

VALENTE

Para o mestre Antunes Filho, que aprecia esta história.

“É estranho mas verdadeiro, pois a verdade é sempre estranha – mais estranha que a ficção.”
Byron, em “Don Juan”.


Orozimbo Valente, O. Valente, Valente ou, simplesmente, Vale, é considerado o maior ator rodrigueano do nosso teatro. Milton Morais, Jorge Dória, Osvaldo Loureiro, José Maria Monteiro, Nélson Caruso, Ivan Cândido, Jece Valadão e tantos outros grandes atores interpretaram Nélson Rodrigues e souberam tirar proveito do “prato cheio” que os textos do nosso maior autor teatral oferece aos seus intérpretes. Mas Valente é imbatível. Quem o viu em “Os Sete Gatinhos”, em “Álbum de Família” ou em “Bonitinha mas Ordinária”, jamais esquecerá a verve, o humor corrosivo, a truculência e a dramaticidade que emanava daquela figura enorme e poderosa.
E Valente propiciou a um jovem ator uma experiência inusitada: durante um espetáculo, diante de uma platéia lotada, ele foi apresentado a um colega que ele nunca tinha visto antes e de quem nem sequer tinha ouvido falar.

Nélson Rodrigues teve seus primeiros textos montados no Rio de Janeiro na década de quarenta, mas em São Paulo, até os anos setenta – ao contrário de que ocorre hoje - o genial autor era mal recebido em montagens esporádicas que vinham do Rio. Dizia-se que Nélson não fazia sucesso em São Paulo, da mesma forma que Abílio Pereira de Almeida, do TBC paulista, não era bem aceito no Rio. Até mesmo o grande Ziembinski – quem primeiro descobriu a genialidade de Nélson - tivera a ousadia de montar “O Boca de Ouro” em São Paulo, reservando para si o personagem protagonista, o que resultou em retumbante fracasso: público e crítica não aceitaram aquele bicheiro carioca falando com sotaque polonês.
Foi então que uma atriz e produtora resolveu correr o risco de montar “Bonitinha mas Ordinária” em seu teatro de São Paulo.
Depois de alguns testes, o nosso jovem ator foi escolhido para representar Edgar, o herói da peça, que é obcecado por uma frase do Otto Lara Resende: “O mineiro só é solidário no câncer.” Para o personagem do dr. Werneck, que se opõe a Edgar, o diretor do espetáculo fez questão de trazer do Rio de Janeiro um ator por quem ele tinha admiração, o grande Valente, que por sinal já tinha feito o personagem na primeira montagem da peça, no Rio, em 1962.
Como Valente já conhecia bem o personagem, ele só chegou a São Paulo na segunda ou terceira semana de ensaios. Veio acompanhado da mulher e de um cachorrão de estimação, sendo instalados num apartamento no mesmo prédio do teatro. Segundo o administrador da companhia, a idéia de manter Valente por perto era proposital, já que ele carregava a fama de ser temperamental. Hoje diríamos que, apesar de também ser psicanalista, o grande ator sofria de “transtorno bipolar”.
Naturalmente que na classe teatral a lenda de Valente já era bem conhecida. Além da carreira de ator, ele sempre tivera o sonho de ser médico. Dizem que cursou medicina durante uns vinte anos, formando-se com mais de cinqüenta, e agora com mais de sessenta anos nas costas também exercia a profissão de médico psicanalista num hospital público. “Só um louco faria a loucura de que se tratar com o louco do Valente”, diziam as inumeráveis más línguas do teatro.
Outro fato curioso referia-se ao nome artístico de Valente. Ele odiava o nome que recebera na pia batismal: Orozimbo. Tanto assim que, em seus primeiros trabalhos como ator, ele assinava apenas O. Valente. Mais tarde passou a ser apenas Valente. E ai de quem o chamasse de Orozimbo! Dizem que o homem partia pra briga.
Tudo transcorreu normalmente durante os ensaios do espetáculo. Os problemas começaram a acontecer logo depois da estréia. Uma hora antes da peça começar, Valente descia do seu apartamento e ia tomar uma biritas no botequim que ficava ao lado do teatro. Assim ele conseguia driblar a mulher, uma santa senhora, que o tratava com zelo maternal mas sob rédea curta. Todos que participavam do espetáculo, e que reverenciavam o extraordinário ator, começaram a estranhar o seu crescente mau humor.
Certo dia, Valente pediu pra ter uma conversa séria com o diretor.
“O jovem ator me olha no fundo dos olhos!”, reclamou Valente.
“E isso não é bom?”, estranhou o diretor.
“Não naquela cena!”, gritou Valente.
Na tal cena, o dr. Werneck diz a Edgar com violência: “Você vai casar com a minha filha, mas não se esqueça que você é um ex-contínuo!”. Ao que Edgar responde: “Tá certo. Eu sou um ex-contínuo. E você é um filho da puta. Seu filho da puta!” Nisso a luz cai encerrando a cena com grande impacto.
Valente argumentou que o jovem ator levava a ofensa para o plano pessoal, chamando ele, Valente, de filho da puta.
Claro que não se tratava disso. Pelo contrário, o jovem ator tinha respeito e admiração pelo colega veterano.
Nélson Rodrigues é sempre enxuto, econômico, preciso. Não exatamente como hoje, em que se corta e se adapta Nélson a torto e a direito, naquela época mexer num texto do autor seria uma heresia que ele não permitiria. No entanto, a fim de acalmar Valente, o diretor pediu que Edgar evitasse o “filho da puta” e o chamasse de “bosta”: “Eu sou um ex-contínuo e você é um bosta. Seu bosta!”. O jovem ator, claro, aceitou a ordem, mesmo sabendo que a cena perdia o impacto, porque nada como o palavrão adequado na hora certa.
Não adiantou grande coisa a mudança do texto. Valente continuou chegando em cima da hora, enchendo com bafo de bebida o pequeno camarim que dividia com o jovem ator. Um silêncio pesado se estabeleceu entre os dois, acentuado pela timidez do jovem ator diante do mau humor daquele monstro sagrado. Alertada pela produção ou porque o próprio Valente comentasse alguma coisa em casa, sua mulher esperou certo dia o jovem ator na porta do teatro.
“Desculpe o Vale, meu filho. Ele tá com alguns problemas. Ele é como uma criança. Desculpe ele”, disse a mulher. O jovem ator ficou tão sem graça que nem soube o que responder. Sua admiração pelo grande ator sempre permanecera a mesma.
Até que, certa noite, Valente não apareceu no teatro. O administrador da companhia subiu até o apartamento do ator e descobriu que, momentos antes, ele tinha ido pra rodoviária com a mulher e o cachorro. Ele voltava para o Rio sem avisar ninguém.
Já eram quase nove horas da noite e um bom público aguardava na sala de espera o início do espetáculo, que seria suspenso, claro. Aí veio uma notícia surpreendente. Havia um outro ator que iria fazer o papel de dr. Werneck a partir daquela noite. E esse ator chamava-se Evilásio Marçal.
O jovem ator ficou pasmo. Primeiro a inesperada fuga de Valente. Depois esse outro ator, que surgia do nada pra salvar a continuidade imediata do espetáculo. Ele nunca tinha visto e nem nunca tinha ouvido falar desse tal Evilásio Marçal. Como é que um sujeito desconhecido ia entrar no espetáculo assim de repente, num papel tão difícil e sem nenhum ensaio?
Foi então que a produtora explicou o que estava acontecendo. Desde que Valente começara a dar problemas, ela contratara alguém para substituí-lo: um ator do teatro de revista, a quem o diretor do espetáculo também admirava. Fazia algum tempo que Evilásio assistia aos espetáculos. Tinha decorado o texto e as marcações. Como Valente o conhecia, Evilásio se escondia no fundo da platéia, a fim de não despertar nenhuma desconfiança no outro a respeito de sua possível substituição. Avisado por um telefonema, ele já estava a caminho do teatro, vestindo o seu figurino de cena, um smoking.
Agora já eram mais de nove e meia, o público se impacientava. Quando Evilásio apontou na porta do teatro, o espetáculo teve início. Havia uma passagem por cima da platéia que Evilásio utilizou, enquanto transcorriam as primeiras cenas de Edgar. Por isso, o jovem ator e o estreante não se encontraram nos bastidores. Até o momento em que o dr. Werneck entra em cena por um lado do palco, Edgar pelo lado oposto, e são apresentados um ao outro. “Edgar, quero te apresentar o teu futuro sogro, o dr. Werneck”, diz o cafajeste do dr. Peixoto, que tinha planejado aquele estranho casamento.
Assim o jovem ator acabou conhecendo Evilásio Marçal no palco e na vida real, ao mesmo tempo. Ele tinha imaginado que, ao entrar em cena, iria encontrar um sujeito grandalhão como Valente, mas, ao contrário, Evilásio era baixinho. E, no final dessa cena, o texto ofensivo à mãe do dr. Werneck pode ser retomado sem nenhum problema.
Sem nunca ter ensaiado com o elenco, Evilásio não errou nenhuma fala ou marcação,
neste ou nos outros espetáculos que se seguiram por mais alguns meses. Fora de cena, era um sujeito extremamente gentil. Tinha um emprego público e vestia-se sempre de terno e gravata. Depois que a peça saiu de cartaz, o jovem ator nunca mais o viu e nem teve notícias dele. E até hoje – não fosse o testemunho de outras pessoas que conheceram Evilásio Marçal – tem a impressão de que ele não passa de uma miragem com que uma vez contracenou.
Quanto ao problema de Valente, que não conseguia suportar a agressão verbal à mãe do seu personagem, logo surgiu uma possível explicação. Parece que, pouco antes de voltar para o Rio, sob os efeitos do álcool, o ator teria revelado a alguém da produção que, quando menino, vivera nas proximidades da avenida São João, no centro de São Paulo, onde sua mãe fazia a vida. Se isso for verdade, o fato é bastante curioso: o psicanalista dr. Orozimbo Valente não conseguiu superar o seu próprio trauma infantil. Situação dramática bem rodrigueana.

Depois de “Bonitinha mas Ordinária, o jovem ator encontrou Valente apenas mais uma vez. Alguns anos mais tarde, no Rio de Janeiro, visitando uma amiga que morava na rua Piragibe Frota Aguiar, que limita Ipanema e Copacabana, ele foi até a janela do apartamento examinar o belo sol de verão que fazia lá fora. Como esta rua é muito estreita, sua atenção foi logo despertada por um homem gordo, de bermuda e sem camisa, que brincava com um cachorro na sala de um apartamento em frente. De repente o homem veio até a janela e deu de cara com o jovem ator que o observa com curiosidade. Houve um instante de embaraço e os dois acabaram se reconhecendo. O jovem ator, em sua timidez, não sabia o que fazer, talvez fugir da janela, como se nada tivesse acontecido. Foi salvo porque Valente sorriu pra ele, ao mesmo tempo em que lhe enviava um gesto da saudação.
Foi um gesto de adeus. Poucos dias depois, já em São Paulo, o jovem ator soube pelos jornais que o grande Valente tinha falecido repentinamente no dia anterior. Que ele descanse em paz!