sábado, 12 de dezembro de 2009

ALGUMA MEMÓRIA (1)

No belo filme argentino “O Mesmo Amor, a Mesma Chuva”, de Juan José Campanella, um escritor frustrado (interpretado por Ricardo Darin) resolve publicar um livro autobiográfico. Discutindo a obra com um amigo jornalista, logo surge o conhecido aforismo: “Pinte tua aldeia e serás universal.” Replica o amigo: “Tudo bem, mas você não precisava pintar a tua aldeia com merda.”
Espero, nestas minhas memórias, não estar fazendo a mesma coisa

*

Minha primeira lembrança, aí pelos dois anos de idade, é um barquinho – na verdade, um toquinho maciço de madeira em que fora esculpido um barquinho, pintado de vermelho e amarelo, possivelmente confeccionado por meu avô Emílio, pai de minha mãe, que era marceneiro. Vejo-me de pé na escada da cozinha de minha casa manobrando com um barbante o tal barquinho, que bóia no quintal graças uma das muitas enchentes que seguidamente inundavam nosso bairro na década de quarenta.
Esta cena acontece em um terreno de meu avô, que ocupava mais ou menos meio quarteirão da Rua Vilela Tavares, entre as ruas Souza Reis e Augusto Severo, bairro de São João, em Porto Alegre. Naquele espaço tive a sorte de viver toda a minha primeira infância, convivendo com meus quatro avós e mais uns trinta parentes - pais, irmãos, tios e primos –, território esse que hoje se me afigura pleno de magia.
Vô Emílio tinha nascido em 1893 em um vilarejo às margens do rio dos Sinos, filho de um professor de escola primária, que na minha imaginação delirante bem poderia ter sido o louco dramaturgo Corpo Santo, que andou por aquela região dando aula. Ainda adolescente meu avô emigrou para Porto Alegre em busca de trabalho. Logo conseguiu emprego como açougueiro e foi nessa condição que conheceu minha avó. Típico brasileiro, de sobrenome Silva, acabou se casando com a lourinha alemã, de uma família de imigrantes alemães, os Buhl.
Imagino que meus avós tenham se conhecido no açougue, ele cortando carne, ela comprando os melhores filés para uma rica família de alemães da Avenida Independência, a rua mais chique da cidade, onde ela, ainda menina, trabalhava como empregada doméstica. O fato é que acabaram se casando, ele com dezenove anos de idade, ela com dezessete. Naquele momento ele já tinha mudado de emprego, era marceneiro em um estaleiro do Rio Guaíba, enquanto ela foi ser dona de casa para poder cuidar da penca de filhos que foi nascendo. E já estavam morando na casa que ele construíra com suas próprias mãos no enorme terreno da minha infância, naquele tempo uma região quase deserta, sujeita às cheias do Guaíba e às águas de chuva que desciam dos altos da Rua Benjamin Constant.
Assim é que, pelos cinquenta anos seguintes, a grande preocupação de meu avô foi aterrar sua propriedade. Com carrinho de mão, carroça puxada por burro ou caminhão de carga, ele obsessivamente carregou terra ou entulho que lhe eram doados com o objetivo de deter as inundações que se sucediam na época das chuvas. Somente na década de sessenta, quando a rua foi calçada e a região urbanizada, foi que ele pode descansar da sua labuta. Lembro-me de meu pai, que tinha um caminhão Chevrolet Gigante, trazendo entulho de alguma obra. E, à medida que o quintal ia sendo aterrado, as casas de madeira iam sendo erguidas através de macacos manuais, pedras e troncos de árvore. Eu assistia aquela operação, que envolvia diversos homens da família, com grande curiosidade.
Certa vez, vi uma cobra de mais ou menos meio metro esgueirando-se para debaixo de uma casa que estava rente ao chão. Alertei meu avô, que, munido de um alicate, desapareceu da minha vista arrastando-se pelo espaço exíguo em que a cobra se enfiara. Depois de um minuto aflitivo, ele reapareceu com a cobra presa na ponta do alicate. Que avô corajoso!
Não conheci ninguém que acreditasse tanto na importância do trabalho como meu avô. Getulista, depois de ter sido um integralista seduzido pelo nacionalismo de Plínio Salgado, ele costumava dizer com muito orgulho que, em sua juventude, tinha trabalhado dezessete horas por dia no estaleiro, antes das leis trabalhistas criadas por Getúlio Vargas.
Conta-se que em sua fase integralista, meu avô convenceu toda a família, inclusive os genros, a usar camisa verde, tendo oferecido sua casa para reuniões políticas com Alberto Pasqualini e Plínio Salgado. Sobraram dessa época alguns bancos compridos que ele construiu para as tais reuniões que congregavam os integralistas do bairro. Quando Getúlio ameaçou com prisão qualquer manifestação integralista, as bandeiras e as camisas verdes foram imediatamente enterradas no fundo do quintal. Isso não o impediu de se tornar um ardoroso getulista. Nacionalista exaltado, sempre hasteava na frente da casa uma enorme bandeira brasileira durante a Semana da Pátria. Pregava a derrubada das florestas e a construção de estradas para o progresso do país.
Agora vô Emílio estava trabalhando por conta própria, construindo e reformando casas de madeira, as suas e as da vizinhança. Algumas vezes, durante as férias escolares, cheguei ajudá-lo a destelhar algumas casas. Como não recebia pagamento e ainda era repreendido por quebrar algumas telhas, deixei de ajudá-lo, apoiado por meu pai que temia que eu, aos doze ou treze anos, recebesse alguma telhada na cabeça.
Nos fundos da casa onde morava, meu avô mantinha a sua oficina, com uma comprida e sólida bancada de madeira e toda a sorte de ferramentas de marcenaria: torno, serras e serrotes, martelos, formões, alicates, prumos, furadeiras, plainas, enxós, lixadeiras, pé-de-cabra, pás, enxadas, chaves-de-fenda, pregos e parafusos - objetos encantados que eu, moleque, gostava de fuçar, para desespero do velho que não gostava que mexessem nos seus pertences. Mas ficava satisfeito quando alguém profetizava que, devido ao meu interesse, quando eu crescesse iria ser marceneiro como ele.
Ao final de um dia de trabalho, enquanto minha avó regava as plantas, flores e árvores de fruta, meu avô trazia uma cadeira para a calçada, onde ficava tomando chimarrão e puxando conversa com todos os vizinhos que passassem pela rua. Gostava de prosear contando histórias que tinha vivido, algumas verdadeiras, outras inventadas por sua rica imaginação – como a narrativa de ter comandado um batalhão de soldados alemães em combate na Primeira Grande Guerra, ele que nunca tinha ido além do rio dos Sinos, a quarenta quilômetros de Porto Alegre. Outra aventura que ele, já senil, gostava de contar é que tinha conhecido dentro de um ônibus um radialista da Rádio Gaúcha que o levara até a emissora, onde ficara no ar durante um tempão recitando as suas trovas.
Minha avó, cujo nome era Elizabeth, chamada de Alice devido à sonoridade próxima do nome alemão, não era menos trabalhadeira que o marido. Teve oito filhos, sendo que um morreu ainda bebê e outro, Valter, aos dezessete anos, vítima de uma tuberculose provocada, como diziam, por uma bolada nas costas quando jogava futebol. Pra mim, durante a minha infância, ele foi um personagem mítico porque era sempre lembrada na família a minha semelhança física com ele, fato comprovado pelas fotografias que conheço dele. Da mesma forma, examinando a fotografia de casamento de meu bisavô Joseph Buhl, ainda na Alemanha, percebo agora a nossa espantosa semelhança física. Esse bisavô teve um fim trágico: funcionário de uma fábrica de cerveja de Porto Alegre, gostava de beber no trabalho e nas horas de folga; por causa disso, morreu afogado ao cair de um pontilhão durante uma enchente.
A penúltima vez que vi minha avó, eu já morando no Rio de Janeiro, ela com mais de setenta anos, encontrei-a no topo de uma escada de pedreiro caiando com uma broxa uma casa que iria alugar. Dois ou três anos depois, voltei a encontrá-la em seu leito de morte: tinha sofrido uma queda e quebrara a bacia.
Vó Alice vivia em função da família, cuidando dos filhos e netos, aplicando injeções, cataplasmas e clisteres, ajudando nos partos e na preparação dos velórios, o nascimento e a morte dentro de casa, naquela época.
Eu era o seu neto mais velho. Recordo sempre que ela me levava pela mão quando ia fazer compras; entrava no armazém e fazia com que o vendeiro deixasse eu escolher as balas de figurinha, com a foto de jogadores de futebol ou artistas de cinema, que faltavam na minha coleção. E por todo o caminho ela ia parando para conversar com as pessoas conhecidas, às vezes em alemão, um dialeto bárbaro que sempre escutei com encanto apesar de não entender absolutamente nada. Guardo até hoje comigo, como herança, uma coleção de cartas e cartões postais que ninguém consegue decifrar completamente, enviados pelos familiares que ficaram na Alemanha, em que está incluído um outro ramo da família, os Adam. Essa correspondência foi interrompida no começo da Segunda Guerra Mundial.
Meu avô, talvez por ciúme machista, não gostava que minha avó ficasse batendo perna pela rua. Certa vez, ao chegar em casa no final da tarde, encontrou a porta trancada à chave. Não teve dúvidas: pegou um machado e arrebentou a porta. Logo depois, quando minha avó chegou, partiu pra cima dela com uma daquelas navalhas antigas de fazer barba. Vejo a imagem assustadora de meu pai impedindo a agressão, segurando ao alto os punhos de meu avô, a navalha nua brilhando em sua mão direita. Outra vez comentou-se que ele tinha espancado brutalmente o burro que resolvera empacar. A explicação para tais acessos de raiva era a de que ele tinha sido mordido por cachorro louco quando era menino.
Mas o parente que me parece o personagem mais desequilibrado na minha infância foi o tio França – ou Franz, como era chamado pelo lado alemão da família. Irmão de minha avó, costumava aparecer somente à tarde para fazer um lanche e escapar à vista de meu avô, que não o suportava por não trabalhar. Andava sempre de terno, todo amarrotado e puído. Morava sozinho numa casa que herdara da família no bairro dos Navegantes e tinha o hábito de recolher tudo quanto era quinquilharia que encontrasse na rua: jornais velhos, latas usadas, garrafas vazias, móveis e máquinas quebradas. Como não tinha fonte de renda, cortou a luz elétrica e vivia à luz de velas. Depois de anos, a casa e o quintal estavam superlotados de lixo, ratos e baratas.

Fui algumas vezes a sua casa acompanhando minha tia mais jovem, a tia Luci, que seguidamente o procurava para saber de seu futuro. Sim, tio França tinha o dom de ler a sorte nas cartas do baralho. Minha mãe, muito católica, achava que era pecado consultar as cartas, mas mesmo assim certa vez me atrevi a verificar o meu destino: eu iria sair de Porto Alegre e iria trabalhar para grandes empresas, segundo as palavras de meu tio-avô vidente.

(continua na próxima semana)

2 comentários:

  1. Tio Enio! Me arrepiei ao ler essa primeira parte! Não conheci a vó Alice e o vô Emílio, mas lembro do tio França e de sua asa... fui lá uma vez, ainda criança... era assustadora e intrigante! parabéns por nos contar essa história da família.
    Abraços, Letícia

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