terça-feira, 29 de dezembro de 2009

ALGUMA MEMÓRIA (2)

“A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade.”
Manuel Bandeira

À medida que os filhos foram se casando, vô Emílio foi construindo casas em seu enorme terreno, onde se instalavam as novas famílias. Depois de um tempo, essas casas foram sendo alugadas e mesmo vendidas para outras pessoas. E, numa dessas subdivisões do terreno, veio morar a família dos meus outros avós, os pais de meu pai. Naturalmente, meu pai deve ter intermediado a venda.
Este outro ramo de minha família veio do interior do Estado, mais precisamente de Glorinha, que naquele tempo fazia parte do município de Santo Antônio da Patrulha. Meu avô Osório Gonçalves dos Santos, gauchão alto e magro, era casado com minha avó Dinah, conhecida como Picucha devido a sua pequena estatura. Meu pai – Francisco Soares Gonçalves - costumava mencionar às vezes um seu avô apelidado de Chico Diabo, possivelmente uma referência a façanhas revolucionárias típicas dos velhos tempos. Sabendo-se que no final da Guerra do Paraguai, em 1870, o ditador Solano Lopes foi morto por um ordenança chamado Chico Diabo, fica a dúvida se meu bisavô teve alguma coisa a ver com aquilo ou não. Por sua vez, meu pai lembrava-se de que, aos quinze anos de idade, na Revolução de 23, teve de esgueirar-se por baixo de cercas de arame farpado, a mando de seu pai, a fim de levar certa mensagem secreta para um chefe revolucionário. Seu nome, Francisco, advém desse avô, além do fato de ter nascido numa fazenda em São Francisco de Paula, uma região montanhosa próxima a Gramado. Além de um sobrinho com o nome de Francisco, também sou Ênio Francisco. E o santo de minha admiração - devido a sua maravilhosa biografia e ao extraordinário filme de Roberto Rosselini (“Francisco, o Arauto de Deus”) – é São Francisco de Assis.
Os Soares, Santos e Gonçalves tinham, pelo menos até a minha infância, as características pessoais típicas de determinado tipo de gaúcho, herdadas de seus antepassados, os paulistas de Sorocaba que colonizaram o Rio Grande do Sul no século 18. Tal situação é muito bem descrita por Érico Veríssimo em “O Continente”, a primeira parte de sua obra-prima “O Tempo e o Vento”. Para melhor cuidar de suas tropas de burros, cavalos e rebanhos de gado, os paulistas, que inicialmente iam e vinham em direção ao sul, começaram a se fixar no pampa gaúcho, deixando alguém da família de vigia o tempo integral. Isso porque castelhanos da Banda Oriental do Uruguai invadiam o Rio Grande a fim de roubar gado. Em seu isolamento, na função de vigiar seu rebanho, esse tipo de gaúcho – que se opõe àquele outro, o falastrão contador de proezas – tornou-se extremamente introvertido e desconfiado. Qualquer sujeito desconhecido que chegasse perto de sua estância era motivo de desconfiança: podia ser ladrão de gado. Fundamental era derrubar árvores: atrás delas ou em sua sombra poderia estar se escondendo o inimigo. Não sem razão - na minha adolescência, quando eu costumava chegar tarde da noite em casa - meu pai cortou uma grande árvore que jogava sombra na calçada da rua e no quintal. Teve de se haver com um fiscal da Prefeitura!
Então o menino Lolinha – meu pai era conhecido na intimidade como Lola – nasceu e se criou no campo na companhia de mais dez irmãos. Parece que levavam uma vida bastante ociosa, não se dedicando muito a plantar ou criar gado. Tive tal impressão pelos relatos da família e ao visitar a fazenda duas vezes quando menino. Tudo era muito primitivo e abandonado; o chão da casa era de terra batida, e a roupa era lavada numa pequena sanga, de onde também se recolhia a água para consumo.
À beira dessa sanga assisti a uma cena inesquecível: minha mãe e tia Maria estavam lavando roupa, quando meu primo Cláudio, de dois ou três anos, caiu de um barranco dentro d’água e desapareceu das nossas vistas; ao vir à tona pela segunda vez, minha mãe o catou pelos cabelos e o trouxe para a margem são e salvo.
Imagino que talvez a fazenda tenha entrado em decadência, tal como acontece na dramaturgia de Jorge de Andrade (“O Telescópio”, “A Moratória”, “Rasto Atrás”), que trata desse tema em razão da Crise de 29 no interior paulista. O fato é que, ao se tornarem adultos, meu pai e todos os seus irmãos acabaram se mudando para Porto Alegre em busca de melhor situação. Por último, meus avós também abandonaram a estância e vieram se juntar aos filhos, que agora eram obrigados a trabalhar arduamente para sobreviverem.
As distâncias eram longas. Pra se ter uma idéia, uma vez que meu avô veio de Glorinha a Porto Alegre levou um dia inteiro por caminhos tortuosos no lombo de um cavalo. Somente no início da década de 30, por obra do interventor Flores da Cunha, é que a estrada foi pavimentada com concreto. E ficou conhecida pelo nome de "Faixa". Hoje fazemos essa mesma viagem em meia hora de carro pela “Free Way”.
Depois que outros irmãos vieram para a cidade grande, meu pai também botou o pé na estrada. Veio morar com uma irmã mais velha, casada com um italiano – o tio Canova - e residindo no Passo d’Areia, bairro situado ao lado de São João. O primeiro emprego que arranjou foi o de ajudante de caminhão, depois virou motorista e, finalmente, feliz proprietário do fantástico Chevrolet Gigante da minha mais tenra infância.
Em setembro de 1935, houve uma grande festa campal em Porto Alegre, no Parque da Redenção – hoje Parque Farroupilha – em comemoração ao primeiro centenário da Revolução Farroupilha. Nesta festa meus pais se conheceram. Formavam um belo casal, como se pode ver na foto oficial do casamento: ele muito elegante com seu cabelo preto e liso, ela lourinha como sua mãe.
Minha avó Picucha, depois que se mudou para a Capital, nunca mais quis sair de dentro de casa, raramente chegava até o portão do quintal. Sempre que eu passava na rua pra ir ao colégio, lá estava ela, curiosa e assustada, espiando o mundo detrás de sua janela. Permaneceu reclusa, ouvindo rádio ou jogando víspora com as filhas por uns trinta anos, até sua morte.
Uma única vez saiu de casa. Por ocasião do Golpe Militar de 64, apavorada com a ameaça de bombardeio a Porto Alegre, ela pediu que um filho a levasse de carro para Taquara, município próximo à fazenda de Glorinha, onde se homiziou junto a umas primas que não via desde muito tempo. Lembrava seu tempo de menina, no isolamento da fazenda, quando as histórias de degola – a chamada “gravata vermelha” - corriam soltas nas revoluções gaúchas. Ela tinha vivenciado a terrível Revolução Federalista de 1893, em que, das dez mil vítimas, mais de mil foram degoladas a sangue frio, segundo o historiador Carlos Reverbel.
Em 64, meu avô Osório já tinha morrido fazia tempo. Lembro-me dele rezando o terço antes de ir dormir. Da casa do meu outro avô, que ficava no terreno ao lado, revejo sua cabeça branca passar pela janela alta de sua cozinha, indo e vindo, pra lá e pra cá, enquanto recita ave-marias e padre-nossos.
No dia em que ele morreu e foi velado na sala, meu outro avô, tomando chimarrão na calçada ao lado, vangloriava-se por ainda estar cheio de saúde. Era dia 31 de dezembro, e tal data deprimia tanto meu pai que, daí em diante, nunca mais quis comemorar a entrada do ano novo, recolhendo-se bem cedo à cama.
Outra cena dolorosa que ainda tenho viva diante dos olhos refere-se à morte de uma prima ainda menina. Chamava-se Regina e foi a primeira filha de tia Maria e tio Antônio, irmão de meu pai.
Naquele tempo o enterro era feito a pé, cobrindo-se a distância de uns três quilômetros até o Cemitério São João Batista, com os homens acompanhantes revezando-se na condução do féretro. Crianças conduziam o caixão da criança morta.
Na hora do enterro, quando o caixão foi sendo levado para fora da casa de Vô Osório, tio Antônio foi o último acompanhante do cortejo. Ainda vejo meu tio – que era muito parecido com o ator Cary Grant – parado no vão da porta, desgrenhado, pés descalços, camisa aberta, olhando o caixãozinho branco da filha afastar-se. Ele não consegue andar, desaba no degrau da escada, segura a cabeça enlouquecida com as duas mãos e urra de dor. Nem no cinema assisti até hoje cena tão trágica.
(continua na próxima semana)

sábado, 12 de dezembro de 2009

ALGUMA MEMÓRIA (1)

No belo filme argentino “O Mesmo Amor, a Mesma Chuva”, de Juan José Campanella, um escritor frustrado (interpretado por Ricardo Darin) resolve publicar um livro autobiográfico. Discutindo a obra com um amigo jornalista, logo surge o conhecido aforismo: “Pinte tua aldeia e serás universal.” Replica o amigo: “Tudo bem, mas você não precisava pintar a tua aldeia com merda.”
Espero, nestas minhas memórias, não estar fazendo a mesma coisa

*

Minha primeira lembrança, aí pelos dois anos de idade, é um barquinho – na verdade, um toquinho maciço de madeira em que fora esculpido um barquinho, pintado de vermelho e amarelo, possivelmente confeccionado por meu avô Emílio, pai de minha mãe, que era marceneiro. Vejo-me de pé na escada da cozinha de minha casa manobrando com um barbante o tal barquinho, que bóia no quintal graças uma das muitas enchentes que seguidamente inundavam nosso bairro na década de quarenta.
Esta cena acontece em um terreno de meu avô, que ocupava mais ou menos meio quarteirão da Rua Vilela Tavares, entre as ruas Souza Reis e Augusto Severo, bairro de São João, em Porto Alegre. Naquele espaço tive a sorte de viver toda a minha primeira infância, convivendo com meus quatro avós e mais uns trinta parentes - pais, irmãos, tios e primos –, território esse que hoje se me afigura pleno de magia.
Vô Emílio tinha nascido em 1893 em um vilarejo às margens do rio dos Sinos, filho de um professor de escola primária, que na minha imaginação delirante bem poderia ter sido o louco dramaturgo Corpo Santo, que andou por aquela região dando aula. Ainda adolescente meu avô emigrou para Porto Alegre em busca de trabalho. Logo conseguiu emprego como açougueiro e foi nessa condição que conheceu minha avó. Típico brasileiro, de sobrenome Silva, acabou se casando com a lourinha alemã, de uma família de imigrantes alemães, os Buhl.
Imagino que meus avós tenham se conhecido no açougue, ele cortando carne, ela comprando os melhores filés para uma rica família de alemães da Avenida Independência, a rua mais chique da cidade, onde ela, ainda menina, trabalhava como empregada doméstica. O fato é que acabaram se casando, ele com dezenove anos de idade, ela com dezessete. Naquele momento ele já tinha mudado de emprego, era marceneiro em um estaleiro do Rio Guaíba, enquanto ela foi ser dona de casa para poder cuidar da penca de filhos que foi nascendo. E já estavam morando na casa que ele construíra com suas próprias mãos no enorme terreno da minha infância, naquele tempo uma região quase deserta, sujeita às cheias do Guaíba e às águas de chuva que desciam dos altos da Rua Benjamin Constant.
Assim é que, pelos cinquenta anos seguintes, a grande preocupação de meu avô foi aterrar sua propriedade. Com carrinho de mão, carroça puxada por burro ou caminhão de carga, ele obsessivamente carregou terra ou entulho que lhe eram doados com o objetivo de deter as inundações que se sucediam na época das chuvas. Somente na década de sessenta, quando a rua foi calçada e a região urbanizada, foi que ele pode descansar da sua labuta. Lembro-me de meu pai, que tinha um caminhão Chevrolet Gigante, trazendo entulho de alguma obra. E, à medida que o quintal ia sendo aterrado, as casas de madeira iam sendo erguidas através de macacos manuais, pedras e troncos de árvore. Eu assistia aquela operação, que envolvia diversos homens da família, com grande curiosidade.
Certa vez, vi uma cobra de mais ou menos meio metro esgueirando-se para debaixo de uma casa que estava rente ao chão. Alertei meu avô, que, munido de um alicate, desapareceu da minha vista arrastando-se pelo espaço exíguo em que a cobra se enfiara. Depois de um minuto aflitivo, ele reapareceu com a cobra presa na ponta do alicate. Que avô corajoso!
Não conheci ninguém que acreditasse tanto na importância do trabalho como meu avô. Getulista, depois de ter sido um integralista seduzido pelo nacionalismo de Plínio Salgado, ele costumava dizer com muito orgulho que, em sua juventude, tinha trabalhado dezessete horas por dia no estaleiro, antes das leis trabalhistas criadas por Getúlio Vargas.
Conta-se que em sua fase integralista, meu avô convenceu toda a família, inclusive os genros, a usar camisa verde, tendo oferecido sua casa para reuniões políticas com Alberto Pasqualini e Plínio Salgado. Sobraram dessa época alguns bancos compridos que ele construiu para as tais reuniões que congregavam os integralistas do bairro. Quando Getúlio ameaçou com prisão qualquer manifestação integralista, as bandeiras e as camisas verdes foram imediatamente enterradas no fundo do quintal. Isso não o impediu de se tornar um ardoroso getulista. Nacionalista exaltado, sempre hasteava na frente da casa uma enorme bandeira brasileira durante a Semana da Pátria. Pregava a derrubada das florestas e a construção de estradas para o progresso do país.
Agora vô Emílio estava trabalhando por conta própria, construindo e reformando casas de madeira, as suas e as da vizinhança. Algumas vezes, durante as férias escolares, cheguei ajudá-lo a destelhar algumas casas. Como não recebia pagamento e ainda era repreendido por quebrar algumas telhas, deixei de ajudá-lo, apoiado por meu pai que temia que eu, aos doze ou treze anos, recebesse alguma telhada na cabeça.
Nos fundos da casa onde morava, meu avô mantinha a sua oficina, com uma comprida e sólida bancada de madeira e toda a sorte de ferramentas de marcenaria: torno, serras e serrotes, martelos, formões, alicates, prumos, furadeiras, plainas, enxós, lixadeiras, pé-de-cabra, pás, enxadas, chaves-de-fenda, pregos e parafusos - objetos encantados que eu, moleque, gostava de fuçar, para desespero do velho que não gostava que mexessem nos seus pertences. Mas ficava satisfeito quando alguém profetizava que, devido ao meu interesse, quando eu crescesse iria ser marceneiro como ele.
Ao final de um dia de trabalho, enquanto minha avó regava as plantas, flores e árvores de fruta, meu avô trazia uma cadeira para a calçada, onde ficava tomando chimarrão e puxando conversa com todos os vizinhos que passassem pela rua. Gostava de prosear contando histórias que tinha vivido, algumas verdadeiras, outras inventadas por sua rica imaginação – como a narrativa de ter comandado um batalhão de soldados alemães em combate na Primeira Grande Guerra, ele que nunca tinha ido além do rio dos Sinos, a quarenta quilômetros de Porto Alegre. Outra aventura que ele, já senil, gostava de contar é que tinha conhecido dentro de um ônibus um radialista da Rádio Gaúcha que o levara até a emissora, onde ficara no ar durante um tempão recitando as suas trovas.
Minha avó, cujo nome era Elizabeth, chamada de Alice devido à sonoridade próxima do nome alemão, não era menos trabalhadeira que o marido. Teve oito filhos, sendo que um morreu ainda bebê e outro, Valter, aos dezessete anos, vítima de uma tuberculose provocada, como diziam, por uma bolada nas costas quando jogava futebol. Pra mim, durante a minha infância, ele foi um personagem mítico porque era sempre lembrada na família a minha semelhança física com ele, fato comprovado pelas fotografias que conheço dele. Da mesma forma, examinando a fotografia de casamento de meu bisavô Joseph Buhl, ainda na Alemanha, percebo agora a nossa espantosa semelhança física. Esse bisavô teve um fim trágico: funcionário de uma fábrica de cerveja de Porto Alegre, gostava de beber no trabalho e nas horas de folga; por causa disso, morreu afogado ao cair de um pontilhão durante uma enchente.
A penúltima vez que vi minha avó, eu já morando no Rio de Janeiro, ela com mais de setenta anos, encontrei-a no topo de uma escada de pedreiro caiando com uma broxa uma casa que iria alugar. Dois ou três anos depois, voltei a encontrá-la em seu leito de morte: tinha sofrido uma queda e quebrara a bacia.
Vó Alice vivia em função da família, cuidando dos filhos e netos, aplicando injeções, cataplasmas e clisteres, ajudando nos partos e na preparação dos velórios, o nascimento e a morte dentro de casa, naquela época.
Eu era o seu neto mais velho. Recordo sempre que ela me levava pela mão quando ia fazer compras; entrava no armazém e fazia com que o vendeiro deixasse eu escolher as balas de figurinha, com a foto de jogadores de futebol ou artistas de cinema, que faltavam na minha coleção. E por todo o caminho ela ia parando para conversar com as pessoas conhecidas, às vezes em alemão, um dialeto bárbaro que sempre escutei com encanto apesar de não entender absolutamente nada. Guardo até hoje comigo, como herança, uma coleção de cartas e cartões postais que ninguém consegue decifrar completamente, enviados pelos familiares que ficaram na Alemanha, em que está incluído um outro ramo da família, os Adam. Essa correspondência foi interrompida no começo da Segunda Guerra Mundial.
Meu avô, talvez por ciúme machista, não gostava que minha avó ficasse batendo perna pela rua. Certa vez, ao chegar em casa no final da tarde, encontrou a porta trancada à chave. Não teve dúvidas: pegou um machado e arrebentou a porta. Logo depois, quando minha avó chegou, partiu pra cima dela com uma daquelas navalhas antigas de fazer barba. Vejo a imagem assustadora de meu pai impedindo a agressão, segurando ao alto os punhos de meu avô, a navalha nua brilhando em sua mão direita. Outra vez comentou-se que ele tinha espancado brutalmente o burro que resolvera empacar. A explicação para tais acessos de raiva era a de que ele tinha sido mordido por cachorro louco quando era menino.
Mas o parente que me parece o personagem mais desequilibrado na minha infância foi o tio França – ou Franz, como era chamado pelo lado alemão da família. Irmão de minha avó, costumava aparecer somente à tarde para fazer um lanche e escapar à vista de meu avô, que não o suportava por não trabalhar. Andava sempre de terno, todo amarrotado e puído. Morava sozinho numa casa que herdara da família no bairro dos Navegantes e tinha o hábito de recolher tudo quanto era quinquilharia que encontrasse na rua: jornais velhos, latas usadas, garrafas vazias, móveis e máquinas quebradas. Como não tinha fonte de renda, cortou a luz elétrica e vivia à luz de velas. Depois de anos, a casa e o quintal estavam superlotados de lixo, ratos e baratas.

Fui algumas vezes a sua casa acompanhando minha tia mais jovem, a tia Luci, que seguidamente o procurava para saber de seu futuro. Sim, tio França tinha o dom de ler a sorte nas cartas do baralho. Minha mãe, muito católica, achava que era pecado consultar as cartas, mas mesmo assim certa vez me atrevi a verificar o meu destino: eu iria sair de Porto Alegre e iria trabalhar para grandes empresas, segundo as palavras de meu tio-avô vidente.

(continua na próxima semana)

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

CONTO (3)

MEU PRIMO PADRE
para Carlos Reichenbach Filho

Eu e meu primo temos mais ou menos a mesma idade e somos os primos mais velhos da minha família por parte de mãe. Entretanto, a diferença entre nós dois – pelo menos no início desta história, quando tínhamos mais ou menos uns doze anos – era enorme. Entre outras coisas, ele era atlético e louro, morava no alto da rua Dom Pedro Segundo, reduto dos alemães abastados de Porto Alegre, estudava no Colégio Rosário, o mais caro da cidade, e estava aprendendo a tocar violino com um professor particular. Eu, ao contrário, era magrinho e tímido, morava na parte baixa da cidade, estudava numa escola pública e alimentava o sonho impossível de aprender a tocar piano.
Por falar nisso, nunca esqueço da primeira vez em que vi alguém tocando um solo de piano, quando aconteceu comigo uma espécie de epifania – pra usar uma palavra que está na moda e que pouca gente sabe exatamente o que significa. Eu devia ter uns cinco ou seis anos de idade. Minha mãe e eu subíamos a escadaria que divide a Galeria Chaves ao meio, quando comecei a ouvir um ruído que nunca tinha ouvido antes. Escapei de minha mãe e corri à sua frente tentando encontrar a origem daquele som fascinante. Dentro de uma loja de instrumentos musicais – situada à esquerda de quem sobe na direção da rua da Praia, quando a galeria se alarga - um pianista executava uma valsa que, anos mais tarde, descobri ser “Sobre as Ondas”. Agarrei firme a mão de minha mãe obrigando-a a permanecer comigo diante da grande vitrine, atrás da qual um homem, sentado diante de uma estranha caixa preta com uma tampa levantada, produzia um som que inundava o meu dia de brutal felicidade. Que magia seria aquela vibrando no ar com tanta beleza e me transportando pra não sei onde? Minhas pernas tremeram. Parecia que ia desmaiar, daquela mesma maneira que costumava desmaiar de fraqueza, sentado em jejum no banco da igreja, antes da comunhão dominical. Mas a emoção era inusitada, uma vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. Naquele momento revelador tomei consciência de mim, descobri que eu existia, que eu era alguém com existência própria e independente de pai e mãe, que agora eu era apenas um menino, mas que mais tarde - era só ter paciência de esperar o tempo passar – eu seria um adulto livre o bastante pra poder realizar os meus sonhos, fossem eles quais fossem. Meu destino estava em minhas mãos, só dependia de mim mesmo.
Mas voltando ao meu primo, toda a vez que ia visitar a casa de meus tios eu era obrigado a ouvir-lo arranhando o seu violino em exercícios exasperantes, exatamente o oposto da inesquecível melodia da Galeria Chaves. Eu tinha a impressão de que ele estudava violino meio obrigado pela mãe, uma bela mulher de origem alemã com quem meu tio tinha feito um bom casamento. Então, toda a família reunida na sala, sem entender grande coisa, servia de auditório para meu primo exibir sua habilidade artística. Finda a audição, íamos brincar no quintal, onde ele finalmente se sentia à vontade pulando pelos galhos de uma árvore enorme como se fosse o Tarzã. Do chão, preocupado com os avisos paternos de que não subisse em árvore porque poderia quebrar o pescoço, eu apenas o observa cheio de admiração.
Tais visitas geralmente ocorriam aos domingos depois da missa, aonde tínhamos a obrigação de ir. À tarde, íamos assistir a matinê do cinema América, no Passo d’Areia, que cobrava a ninharia de um mil réis pelo ingresso e exibia dois filmes seguidos, além do episódio semanal do empolgante seriado “Marte Invade a Terra”.
Por essa época aconteceu um fato que me parece marcante. Nosso avô começou a insistir pra irmos visitá-lo num sitiozinho que ele tinha acabado de comprar fora da cidade, um pouco antes de Cachoeirinha. A idéia não me animava muito visto que o nosso avô fazia questão que chegássemos de manhã “bem cedinho a fim de aproveitar o dia”, conforme ele dizia. Já nessa época eu odiava acordar cedo e, tudo bem, tinha a sorte de estudar à tarde. Ao contrário, meu primo estudava de manhã no colégio dos padres e anda tinha o estranho hábito de acordar de madrugada pra fazer ginástica, que ele chamava de “calistênica”.
Vai daí que numa madrugada fria das férias de inverno, nós dois tomamos o primeiro ônibus na direção de Cachoeirinha. O campo começava logo depois do Sarandi e estava coberto pela colcha branca da geada que tinha caído durante a noite. A viagem, que hoje se faz em dez minutos pela via expressa que conduz ao litoral, durou quase uma hora pela estrada ruim. Acordei com meu primo me dando um tapa na cabeça e morrendo de rir. Saltamos do ônibus no ponto certo. O sol ameaçava surgir na linha do horizonte mas era encoberto por uma neblina tão espessa que mais parecia a fumaça de um incêndio. Não se via um palmo diante do nariz, mas era só seguir em linha reta pelo campo aberto que ia dar num morro, como nosso avô nos indicara. Mesmo sem nenhuma visão, começamos a andar cada vez mais depressa como se estivéssemos começando uma brincadeira, um jogo, uma disputa pra ver quem era o mais veloz de nós dois. “Eu sou o Roy Rogers, o rei do faroeste!”, gritou o meu primo no começo do morro, transformando-se em cavalo e cavaleiro ao mesmo tempo.
“E eu sou o Hopalong Cassidy!”, retruquei eu. E sem perda de tempo, saí em disparada meio que patinando na grama molhada pela geada. Apanhado de surpresa, meu primo ficou para trás. Mas logo ouvi ele gritando o meu nome desesperadamente. Achando que aquilo fazia parte do jogo, continuei correndo morro acima. De repente, no meio daquela neblina pastosa de filme de terror, senti uma garra apertando o meu braço e me impedindo de seguir em frente. Instintivamente tentei escapar. “Espera!”, berrou ele no meu ouvido.
Durante alguns segundos ficamos parados no meio do breu, diante do nada. Então, subitamente, o sol apareceu e iluminou o vale à nossa frente. Percebi então que estávamos parados à beira de um precipício que limitava o morro com um corte brutal. Mais um passo e eu teria caído no abismo e, agora, possivelmente não estaria aqui relatando a nossa história.
Premonição do meu primo diante do perigo iminente? Sei lá! Como o episódio nunca foi discutido por nós dois, nem naquele dia nem nunca, decidi naquela época que o meu primo tinha sido o meu anjo-da-guarda salvador, aquele das lições de catecismo que vela por nós nas horas de perigo.


Uns dez anos mais tarde eu estava morando no Rio de Janeiro, onde acabara de cursar o Conservatório Nacional de Música como bolsista. Um belo dia recebo um telegrama do meu primo me avisando que daria uma passada pelo Rio e que gostaria de se encontrar comigo. Fazia muitos anos que não nos víamos, mas eu sabia pela família que ele estava estudando num seminário franciscano em Divinópolis, interior de Minas Gerais.
Dia aprazado ele bate à minha porta, num apartamento conjugado que eu dividia com dois colegas do Conservatório. Eu tinha imaginado que, como bom seminarista, ele viria de batina e com aquela cara sofrida de são Francisco de Assis, tal como foi pintada por Portinari. Entretanto, ele surge à minha frente mais bronzeado de sol do que eu que vivia à beira-mar, usando uma surrada camiseta de meia branca, calça que parecia ser de pijama amarrada na cintura por um cordão e sandálias empoeiradas, essas sim franciscanas – um verdadeiro hippie, o que não deixava de estar na moda naquela época do “paz e amor”
“Cadê a batina?”, perguntei em tom de gozação.
“Deixei no seminário”, respondeu ele sorrindo. “Não sei se você sabe, mas a gente não é mais obrigado a usar batina o tempo todo. Os tempos são outros. Depois de João XXIII a Igreja mudou.”
Convidei-o pra tomar um chope na beira da praia e assim fomos trocando notícias até o final daquela bela tarde de verão com o sol se pondo lá pros lados do Posto Seis. Ele não tocava mais violino. Nem tinha certeza se poderia ter um violino consigo, já que o tal voto de pobreza dos franciscanos estabelecia que ninguém poderia possuir bens particulares. Lembrava-se da minha cara de enfado quando, menino, eu era obrigado a ouvir as audições em que ele maltratava o violino. Nunca imaginara que eu me interessasse pela música e muito menos que, um dia, eu fosse me meter a estudar piano.
Acabou me revelando o motivo de sua vinda ao Rio. “Amanhã embarco pra Alemanha. Veja só, vou estudar a história da religião católica em Frankfurt.”
“Mas precisa ir tão longe a fim de estudar essa história?” – brinquei. “Vamos até ali na igreja Nossa Senhora da Paz que o padre te conta tudinho.”
“A coisa é séria, meu amigo”, respondeu ele e, depois de verificar a mesa ao lado onde dois turistas argentinos cantavam uma mulata, me confidenciou em voz baixa: “Fui mandado pra Alemanha como uma espécie de punição. Acho que você não é tão alienado a ponto de não saber o que está acontecendo no país. Andei me envolvendo num movimento contra a ditadura lá em Minas, e os meus superiores resolveram me mandar embora. Eu acho que é censura, mas eles dizem que fazem isso com o objetivo de proteger a minha integridade física, porque os milicos já me deram umas porradas e continuam atrás de mim.”
Ao tomar conhecimento da ação subversiva do meu primo, achei que seria interessante ele me acompanhar numa visita que eu faria aquela noite. Acontece que a minha namorada morava com uma amiga em Botafogo e tinha me convidado pra jantar com elas. Avisei que talvez eu levasse comigo o meu primo seminarista, o que causou sensação nas hostes femininas: como seria aquela avis rara?
Tomamos um ônibus na Nossa Senhora de Copacabana e fui explicando ao meu primo a situação. Eu estava prestes a ficar noivo, de aliança no dedo como mandava o figurino, e pretendia me casar assim que desse. Isso porque eu tinha alguma convicção de que iria vencer o concurso pra pianista da Orquestra Sinfônica. Então algum dinheiro ia começar a entrar. Por outro lado, minha namorada tinha um emprego razoável, era assistente da colunista social do “Correio da Manhã”. Expliquei também que ela estava dando um tempo em Botafogo porque tenha entrado em desavença com a família, que pertencia ao ridículo café-soçaite carioca e que não aceitava o envolvimento dela com um artista morto de fome.
Mas quem eu achava mais interessante meu primo conhecer era a colega da minha noiva, a que dividia o apartamento com ela. Também jornalista, ela era casada com um professor que estivera preso como terrorista e que, agora, morava na Suécia, pois fora trocado por um embaixador seqüestrado. Ela próprio fizera parte do grupo de seqüestro, o que eu desconfiava mas não sabia com certeza naquela época.
Chegamos ao apartamento e fomos recebidos com festa pelas duas moças, que foram logo abrindo uma garrafa de vinho. “Vinho da missa em homenagem ao padre”, disseram elas.
Minha namorada era mais reservada, enquanto a outra era despachada e bem-falante – daquelas cariocas que têm voz bonita e que costumam falar alto, além do charme especial dos esses e erres. Figura típica da boemia da Zona Sul, espécie de musa da bossa nova e do cinema novo, ela provocou uma série de crônicas apaixonadas escritas por Carlinhos Oliveira no “Jornal do Brasil”; certo fim de noite, no Zepelim, o marido da musa encontrou o cronista completamente bêbado e, não conseguindo mais conter o ciúme, encheu-o de porradas. “Abaixo a ditadura!”, gritou o pobre do Carlinhos sendo socorrido pelos garçons.
Não duvido que ela amasse o marido, mas, com ele agora na Europa, acredito que eventualmente se envolvesse com outros homens pois não estava morta nem nada. E eu estava curioso pra ver se meu primo iria conseguir resistir àquela mulher sedutora. Com o vinho fazendo efeito, ela não se fez de rogada e começou a se jogar pra cima do meu primo. Como uma espécie de provocação, contou uma história que tinha acontecido com ela alguns anos atrás. Uma noite ela voltava de São Paulo de ônibus quando um homem usando batina ocupou a poltrona ao lado. ”O padre era jovem e bonito como você”, disse a sapeca encarando o meu primo. “E confesso que tentei seduzi-lo. Fiz que dormia e fui me encostando nele, primeiro o braço, depois a perna. O padre começou a rezar baixinho, mas não se esquivou de mim. Depois de um tempo, deu pra gemer num sussurro, parecia choramingar, coitado. Mas a coisa não passou disso, que pena! De manhã, quando chegamos ao Rio, ele saltou do ônibus e foi embora como se não houvesse acontecido nada. Se ele quisesse, poderia ter acontecido tudo.”
Devidamente alcoolizado, tanto quanto os outros três, fui sendo dominado por um certo espírito maligno: eu queria tirar a prova dos nove, queria descobrir enfim se aquela vocação do meu primo para o celibato era verdadeira.
Ele, no entanto, permaneceu incólume. Sempre elegante, foi se esquivando do assédio da moça. O tempo todo desviou o assunto para temas mais sérios, como a situação política do país, a censura, a guerrilha no Araguaia, a prisão dos dominicanos em São Paulo. As duas jornalistas, que na redação de seus jornais tinham acesso a informações censuradas, revelaram acontecimentos que espantaram meu primo. Ele acabou concordando que o mais seguro seria mesmo cair fora do país, antes que fosse torturado e morto.
Na madrugada quente do Rio, eu e meu primo fomos caminhando devagar até Copacabana. Logo no início da Barata Ribeiro, alguns caminhões do exército, ali estacionados, estrangulavam a metade da rua. Da outra calçada, meia dúzia de basbaques, certamente sem noção do que estava acontecendo, espiavam os soldados entrando e saindo do prédio em frente. Passamos direto como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo, mas sabíamos que haviam “estourado um aparelho”, como se dizia na época. "Eu me sinto um merda”, desabafou o meu primo. “Me sinto um cachorro fugindo com o rabo entre as pernas!”
Mais adiante, sem que eu lhe perguntasse nada, me disse que sua vocação religiosa era coisa verdadeira. E que nós dois tínhamos a sorte de ter tido, em nossa família, uma sólida formação cristã. E isso – por mais que ocasionalmente nos afastássemos da Igreja – seria um fato fundamental em nossas vidas. Estávamos marcados pra sempre. Seríamos sempre pessoas do bem.
Antes de pegar o ônibus pra voltar ao convento onde estava hospedado, ele encerrou a conversa me recomendando que não deixasse de ler a filosofia cristã de Teilhard de Chardin e “Os Sete Pilares da Sabedoria”, de Thomas Merton. Não segui seu conselho. Por essa época eu estava encantado com a literatura nada edificante de Henry Miller.


Nosso próximo encontro – e que também foi o último – aconteceu recentemente. Quando eu soube que iria dar um concerto em Brasília, logo pensei em rever o meu primo, que residia lá, aposentado como professor da Universidade. Liguei diversas vezes pra Porto Alegre e, com grande dificuldade, finalmente consegui o telefone dele.
Pelas vagas informações que me chegaram através daqueles anos todos, ele tinha largado a batina no final dos anos oitenta. Depois foi dar aula na Universidade e acabou se casando com uma jovem aluna. Era só o que eu sabia.
Chegando ao Hotel Nacional por volta do meio-dia, a primeira coisa que fiz foi ligar pra ele. Atendeu uma voz de menina, eu me identifiquei e logo ouvi qualquer coisa como “Papai, o seu primo de São Paulo quer falar com você”. Esperei um tempão, até achei que não iria me atender, mas finalmente ele se manifestou dando uma desculpa qualquer pela demora. Não entendi porque ele tinha vacilado em conversar comigo. Talvez estivesse apenas se refazendo do espanto com o surgimento de um fantasma vindo lá das brumas do passado. “Quem atendeu foi a minha filha”, explicou. “A mais novinha. Tenho quatro.”
Imaginei que em seguida ele fosse me convidar pra ir até o seu apartamento tomar um café e conhecer sua família. Como o convite não veio, propus que nos encontrássemos naquela tarde à beira da piscina do hotel. Ele vacilou outra vez: deu uma pausa dizendo que ia consultar sua agenda. Acabou marcando nosso encontro para dentro de meia hora; o resto do dia estaria muito ocupado. “Vai ver” - pensei cá comigo – “quer se livrar logo de mim, que devo ser um chato de galocha querendo me enturmar com ele depois de tanto tempo.”
Fui aguardá-lo à beira da piscina debaixo de um inesperado céu nublado. Fiquei lá sozinho tomando a minha cerveja e pensando na vida, que não estava nada fácil. Alguns dias antes, depois de um bate-boca com minha mulher - a quinta de uma série -acabei batendo a porta e machucando a mão esquerda. Meu ortopedista tirou uma chapa e garantiu que estava tudo bem, mas a mão doía pra danar. Claro que eu iria me dar mal no concerto do dia seguinte, se minha mão não melhorasse.
Nisso percebi meu primo se aproximando. Seria mesmo ele? Parecia ter encolhido de tamanho, perdera o porte atlético, a barriga crescera, o cabelo ficara branco e escasso. Pensei com os meus botões que, aos seus olhos, eu também teria me tornado um caco, mas pelo menos meu cabelo continuava abundante e escuro – à custa de muita tintura, mas escuro.
Nossa conversa não engrenava, nossas lembranças familiares eram tristes, sua mãe estava internada num asilo com Alzheimer, quase todos os nossos parentes mais velhos, e mesmo alguns mais novos, já tinham morrido.
Comentei que ele tinha ficado muito parecido com o pai. Ele retrucou: “Você também. Estamos quites.”
Ousei perguntar por que tinha deixado de ser padre. “Te confesso que não sei direito”, respondeu ele lentamente, parecendo analisar suas razões. Pediu mais uma cerveja e acendeu um cigarro. Depois continuou: “Não sei se eu perdi a fé. Mas o fato é que depois de João XXIII a Igreja mudou muito, mudou até demais. Você não faz idéia do que aconteceu com a minha Ordem. Foi se transformando, sei lá. Virou um refúgio de homossexuais. Uma coisa absurda.
De repente as nuvens se esgarçaram e o sol começou a brilhar através do ar seco de Brasília. Algumas mesas próximas foram sendo ocupadas. Crianças se jogaram na piscina fazendo baderna e nos respingando de água. Meu primo chamou o garçom e pagou a conta. Antes que ele se fosse, convidei-o a assistir ao meu recital na noite seguinte. Que também levasse a família. Os convites estariam à sua disposição na bilheteria do teatro.
Ameaçou se despedir ali mesmo, mas fiz questão de acompanhá-lo até hall do hotel. No último instante, quando íamos nos afastando da piscina, cruzamos com uma bela loira que sorriu pra nós. Paramos e ficamos observando o que ia acontecer. À beira d’água, ela tirou a saída-de-praia e revelou um corpão bombado mal encoberto por um reduzido biquíni. Depois esticou a toalha no chão e se deitou de barriga pra baixo, exibindo ao sol o esplêndido bumbum.
“Puta merda, que mulherão!”, não se conteve o meu primo.
No fim das contas ele tinha se tornado um homem comum. Um homem de meia-idade comum. Exatamente assim como eu.
Não me surpreendeu ele não ter comparecido ao meu concerto na noite seguinte.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

CONTO(2)

VISITANTE

Não tenho a mínima idéia de quem é esse homem. Sei apenas que é um perfeito cavalheiro, sempre elegante com seu terno e gravata, os sapatos pretos muito bem engraxados. Percebo este detalhe porque, ao sentar-se na poltrona, ele cruza as pernas e mantém suspenso no ar o pé direito como se fosse um belo pássaro negro e reluzente.
Não se trata de uma invasão, porque ele age de maneira muito educada. Mas certas noites, nas raras vezes em que a família está toda reunida, depois do jantar e da novela, ele entra pela porta do nosso apartamento, caminha pelo corredor, entra na sala, senta-se sempre no mesmo lugar e fica vendo televisão. Não pede licença, não dá boa-noite, não diz uma palavra. Mas, apesar disso, sua presença me traz uma espécie de tranquilidade, como se fosse ele, e não eu, o dono da casa, o responsável por alguma coisa que não sei bem o que é. Ele nada diz e nada lhe é perguntado. Tanto nós quanto ele agimos com a maior naturalidade nessa hora de perfeita convivência.
Trata-se de um homem sério, de mais ou menos uns sessenta anos. Pelo modo como se veste e se comporta, deve ser um burocrata bem sucedido, um diretor de banco, um alto executivo, um chefe de repartição, que sei eu? Às vezes, quando a noite é mais quente, ele toma a liberdade de afrouxar a gravata e tirar o paletó, revelando assim um discreto par de suspensórios, daqueles de antigamente, quando eles combinavam com o cinto.
O mais estranho é que ele não me lembra ninguém que eu tenha visto ou conhecido em toda a minha vida, nem pai, nem parente, nem vizinho, nem artista de cinema ou televisão. Mas, apesar disso, é como se eu o conhecesse desde que nasci.
Ele é apenas uma testemunha silenciosa do que se desenrola ali na sala, quando a família se reúne e contamos uns aos outros o que nos aconteceu naquele dia, o que é quase sempre a mesma coisa. Quando surge um fato surpreendente, ele não aparenta nenhuma emoção, apenas fecha os olhos por alguns momentos e descansa em sua poltrona preferida, que por um acaso é a minha preferida também quando ele não está.
A primeira vez que notei sua presença em nosso apartamento, faz muitos anos, foi numa pequena reunião familiar, possivelmente alguma festa de aniversário não lembro de quem. Achei então que ele tivesse vindo acompanhando algum parente ou amigo da família, apesar dele ter se mantido isolado na sua (minha) poltrona a noite toda sem se relacionar com ninguém. Em dado momento, o nosso gato angorá, sempre tão arisco, aproximou-se dele miando e tranquilamente subiu ao seu colo. Com toda a delicadeza deste mundo, ele repôs o bichinho no chão, que, acredito, sentindo-se rejeitado foi embora da sala pra nunca mais voltar, sendo que na manhã seguinte foi encontrado morto, caído lá no andar térreo.
Depois dessa primeira noite, ele tem vindo sempre mesmo sem ser convidado. Mas a verdade é que, com seu jeito discreto e natural, ele nos cativou profundamente, a ponto de eu temer o dia em que ele deixar de nos visitar. Aí espero que ninguém se jogue pela janela.
Tarde da noite, quando já estamos todos meio sonolentos, ele se levanta e vai embora. Na porta da rua, ele vira-se meio de perfil e dá um boa-noite geral quase imperceptível, um simples murmúrio, que mal consigo ouvir e que mais adivinho porque mal posso vê-lo do sofá onde estou derreado. Hora de dormir.

domingo, 12 de julho de 2009

MEMÓRIA (1)

A primeira vez a gente nunca esquece...
Logo que cheguei ao Rio de Janeiro, no início da década de 60, saí atrás de trabalho como ator. Não conhecia quase ninguém, mas alguém me informou que a TV Continental empregava um grande número de atores em determinado teleteatro que ia ao ar ao vivo (claro, o videotape ainda não existia) nas noites de domingo. Portanto, no início da tarde do meu primeiro domingo na "Cidade Maravilhosa", dirigi-me aos estúdios da emissora, que funcionavam na rua das Laranjeiras.
Naquele tempo não tinha nada de crachá e você entrava em qualquer emissora sem precisar se identificar. No pátio, um assistente qualquer perguntou-me se eu gostaria de participar do teleteatro daquela noite e eu respondi que sim, claro! Na verdade, fiquei apavorado, porque minha experiência como ator era mínima: quatro pontinhas em peças na escola de teatro em Porto Alegre ("Egmont" de Goethe, uma comédia del'Arte, "O Telescópio" de Jorge Andrade e "Matar" de Paulo Hecker Filho). Custei a perceber, com um certo alívio, que iria fazer uma figuração, sem fala, no meio de mais uns trinta figurantes numa cena de batalha.
Nunca tinha entrado num estúdio de tevê e fiquei encantado com aquelas luzes, cenários e figurinos. Era um drama de época, possivelmente baseado em algum romance histórico inglês. Depois de me enfiar na minha roupa de arqueiro do rei, fiquei assistindo aos ensaios. O diretor era um rapaz de Minas Gerais chamado Helvécio (que, desconfio, me dirigiu num "comercial" em Belo Horizonte, duzentos anos depois!) e a estrela, mulher do diretor, chamava-se Magda. O galã também era mineiro: um talentoso ator da minha idade, Paulo Célio, que poucos anos depois morreu de leucemia. Do meu canto, observei encantado a atividade daquele bando de atores, dentre os quais Francisco Milani, Joana Fomm, Jardel Mello, Ênio Santos e Maurício do Vale (o grande ator glauberiano, de quem me tornei amigo anos mais tarde, em São Paulo, quando ele, casado com uma advogada, morou na rua Cesário Mota). O que me espantava era como aquela gente podia decorar tanto texto e viver tão bem aqueles personagens com tão pouco ensaio.
À noite, depois de um sanduíche e um refrigerante oferecidos aos mortos de fome da figuração, foi ao ar o grande drama em três atos registrados por diversas câmeras enormes, verdadeiros trambolhos que os cameramen conduziam com notável perícia: cada vez que mudavam de lente, tinham que desencaixar uma e introduzir a outra, provocando um forte estalido que, estranhamente, os microfones nunca captavam. Fiquei particularmente encantado com uma cena em que o herói subia por uma corda pelo muro do castelo; na realidade, a parede estava no plano horizontal e tudo não passava de um truque devido à posição da câmera e à mímica do ator. Ainda outro dia vi na tevê uma chamada de Batman e Robin ilustrando a mesma situação, e foi aí que tive a idéia de escrever este depoimento.
Na famosa cena da batalha em que eu devia estrear na tevê, havia grande tumulto com câmeras, microfones e figurantes correndo de um lado para o outro. De repente, como uma barata tonta, percebi que estava no lugar errado, no meio dos inimigos, quando deveria estar com a minha turma. Corri para o meu lado, mas tive que passar pela frente de uma câmera. Acabada a cena, no intervalo comercial, levei um pito do cameraman, aprendendo assim a minha primeira lição de tevê: "nunca faça o papel de bobo passando pela frente de uma câmera que esteja no ar."
No final da emissão, o tal assistente me avisou que eu deveria receber o meu cachê dali um mês. Nisso chegou até nós um dos atores principais da telepeça, acho que foi o meu xará Ênio Santos (se não foi ele, foi o Álvaro Aguiar). Examinou-me dos pés à cabeça e explicou: "Estou fazendo um filme e esta noite vamos fazer uma cena importante em que eu, como cirurgião, opero os olhos da mocinha. A produção do filme me encarregou de arranjar um anestesista. Acho que você tem o tipo. Topa fazer?" Claro que topei! Num período de poucas horas, menos de uma semana fora da província, e eu já estava estreando na tevê e no cinema. Era mais do que eu sonhava. Êta cara de sorte!
Pegamos o carrinho humilde do meu xará -e me surpreendi que um ator tivesse condições financeiras de ter um automóvel mesmo naquele estado. Antes da novela de tevê tomar impulso, pouca gente queria ser ator porque teria de andar a pé e, quando muito, de ônibus.
Fomos até um hospital na Praia Vermelha. Numa sala de operações, a luz forte já estava sendo armada. Tratava-se de um filme colorido e em eastmancolor, o que não era pouco naquela época. O melodrama "Teus Olhos Castanhos" era baseado numa música de sucesso do cantor português Francisco José, que também era o galã do filme. A gaúcha Ilza Silveira -grande figura humana que, mais tarde, me daria força na TV Tupi do Rio -era responsável pela adaptação. Ruy Guerra tinha feito o roteiro. A mocinha cega, que voltava a enxergar depois da tal operação, era vivida por Aracy Cardoso. O diretor era outro gaúcho, Ibañez Filho. Mas quem comandava tudo mesmo, pelo menos naquela noite, era o assistente de direção, Sanin Cherques. Extremamente gentil, ele instruía tanto os atores quanto a equipe técnica.
Ganhei um primeiro plano manipulando o controle da anestesia e, apesar da máscara cirúrgica que me escondia a boca, fui identificado pelo meu irmão Evaldo, quando o filme foi exibido em Porto Alegre. Até hoje guardo telegrama que ele me enviou me parabenizando pela participação no filme.
A filmagem atravessou a noite. Quando saí do hospital naquela segunda-feira, um sol glorioso já tinha nascido, era um daqueles dias de verão cuja beleza é exclusividade do Rio. Enquanto esperava a lotação que ia me levar pra Copacabana, exausto e feliz da vida, fiquei analisando o meu primeiro passo naquele universo que eu sempre quisera penetrar, nem que fosse como varredor de estúdio, moleque de recado ou puxador de cabo.
Levei cano tanto da TV Continental quanto do filme. Naquela época, era muito comum o ator não receber o pagamento devido. Muitos canos vieram depois daqueles dois. E a verdade é que isso acontece até hoje. Mas nunca me arrependi de ter dado aquele primeiro passo.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

LUBITSCH

Imperdível a série de filmes de Ernst Lubitsch que o Banco do Brasil está apresentando. Além dos manjados "Ninotchka", "A Viúva Alegre" e "Ser ou Não Ser", um monte de outras obras-primas do mestre alemão.
Começou com "Ana Bolena", de 1920, uma super-produção com enorme figuração e notáveis caracterizações. Emil Jannings, o mais famoso ator europeu de sua época, interpreta Henrique VIII com a exata imagem que temos do "barba azul" inglês, gordo e barbudo. Ele é um fauno cheio de humor correndo atrás das ninfetas de sua corte.
Aqui, Ana Bolena é uma vítima indefesa, ao contrário da esperta e dissimulada Ana Bolena da série que a HBO está apresentando. A verdade do fato histórico nunca ninguém vai saber, apesar de toda e qualquer pesquisa. Acontecimentos registrados hoje pela tevê oferecem diversas versões e interpretações, imagine-se o que ocorreu faz quinhentos anos, sem o testemunho da mídia! Daí a pertinência do conceito emitido por Eça de Queirós com relação a qualquer obra de ficção:"A nudez forte da verdade sob o manto diáfano da fantasia".

terça-feira, 7 de julho de 2009

CONTO (1)

OLHO POR OLHO

Foi numa sexta-feira chuvosa de inverno, no início dos anos oitenta, época em que ainda não havia detector de metais nas portas dos bancos - e esse detalhe é fundamental para a credibilidade da história que está sendo contada.
Nessa noite ele entrou numa casa de samba em Pinheiros, acomodou-se numa banqueta junto ao balcão e pediu ao barman um uísque com gelo. Ele tinha sido amigo de infância do gerente e por isso tinha o costume de frequentar a casa. Não era exatamente um boêmio, mas como só trabalhava à tarde – como segurança numa empresa de transporte de valores - às vezes ia procurar o amigo a fim de bater papo, ouvir música, beber alguns uísques de graça e, principalmente, arranjar companhia feminina. Observou o ambiente e logo percebeu que a situação não era nada propícia ao seu habitual objetivo: nessa noite gelada havia pouca gente e muito mais homem que mulher. Seu consolo foi ficar ali escutando Lupicínio Rodrigues na voz poderosa da grande atração da casa, um negrão de quase dois metros de altura chamado Geraldão, que apresentava-se sozinho solando o seu violão.
Perguntou do amigo gerente a um garçom e foi informado de que ele não viria trabalhar porque estava de cama por conta de um forte resfriado. “Resfriado coisa nenhuma”, interveio o barman. “De vez em quando ele vem com essa conversa. Deve tá com alguma mulher. Mas quem pode, pode. Se eu der uma dessa, perco o emprego.” Ele apenas sorriu porque sabia que seu amigo, apesar de homem sério, era um tremendo mulherengo. Nisso eles se pareciam e talvez por isso se dessem tão bem.
Nesse momento dois ou três rapazes e uma moça aproximaram-se do balcão às gargalhadas, já bem calibrados. Geraldão, lá do seu poleiro diante do microfone, começou a se impacientar com a algazarra que cada vez mais prejudicava sua atuação. Pavio curto, ele costumava partir pra cima dos bêbados que extrapolavam em atrapalhar sua performance. De repente ele não conseguiu mais se conter e esbravejou no microfone: “A noite é uma merda! Ninguém respeita o artista.” Dito isso, botou o violão nas costas e, dirigindo-se para o banheiro, sentenciou: “Vou mijar.”
Logo depois foi a vez do barman perder as estribeiras, acusando os rapazes e a moça de terem se apossado de uma garrafa de uísque que estava sobre o balcão. Como a casa não tinha leão de chácara, o barman convocou a meia dúzia de garçons para expulsar os bagunceiros. Geraldão não se fez de rogado e veio junto “Deixa comigo!”, disse ele. “Eu resolvo sozinho essa parada!” Logo abriu os braços como se fossem os tentáculos de um polvo, envolveu o grupelho e o arrastou para a rua.
Meia hora mais tarde e três uísques pendurados, que depois seu amigo gerente iria aliviar, ele saiu da casa de samba. A noite não ia render nada mesmo, o negócio era ir pra casa dormir. Foi andando todo encarangado debaixo da garoinha miúda e fria.
Quando ia abrindo a porta do carro, sentiu-se agarrado por uma gangue violenta. A moça gritava histericamente: “É ele! É o gerente! É ele mesmo!” “Que gerente nada! Eu sou freguês! Sou freguês como vocês!”, defendia-se ele, tentando se soltar dos rapazes. “Filho da puta!”, rugia a moça. “Você é o gerente! Tava lá no balcão e denunciou a gente!” E não adiantou ele jurar por tudo o que era mais sagrado que não era o gerente, porque os três rapazes desceram-lhe o cacete. Enquanto dois o seguravam pelos braços, o terceiro enchia-o de socos e pontapés. E a moça açulando: “Bate! Bate mais!” Apertado contra o carro, completamente imobilizado, sentiu seu olho direito estourar. Nisso a luz de um poste incidiu sobre o rosto do rapaz que batia e, com a visão do olho que ainda lhe restava, pode registrar, como se fosse um flash fotográfico, as feições do maldito agressor: devia ter uns vinte e poucos anos, olhos azuis e o nariz arrebitado. Seu corpo amoleceu e ele parou de se debater. Julgando que a vítima estivesse entregue, os algozes o soltaram. Num salto inesperado, ele saltou para o meio da rua e correu. Os outros quatro, ainda não satisfeitos, vieram-lhe atrás.
Na esquina havia um botequim ainda aberto e ele o invadiu em busca de refúgio. O dono do bar e alguns pinguços que estavam por ali não esboçaram nenhuma reação quando ele apanhou uma faca de cozinha que estava sobre o balcão. Já os quatro agressores, ao verem a faca apontada na sua direção, não ousaram entrar no bar. Ficaram na porta ameaçando e dizendo palavrão. O rapaz de nariz arrebitado catou uma pedra da calçada e ameaçou atirar em cima dele. “Se acertar o vagabundo, tudo bem!”, avisou o português. “Mas se quebrar um copo aqui dentro, vai ter pra vocês!” Aí eles desistiram e foram embora dizendo que iriam “arrebentar com o carro desse gerente filho da puta”.
“Se eles queriam te pegar é porque alguma coisa você fez”, comentou o português. “Vai ver, tu tá devendo, malandro!”, emendou um pinguço.
Só estava enxergando de um olho e precisava de ajuda. Era evidente que, naquele botequim infecto, ninguém iria socorrê-lo. Portanto, depois de se certificar de que, lá no meio do quarteirão, a gangue concentrava-se em depredar o seu carro, correu de volta à casa de samba. Mal explicou ao pessoal o que tinha acontecido, suas pernas bambearam e ele desmaiou.
No dia seguinte, já sabendo que tinha perdido o olho direito, recebeu a visita de Geraldão no Pronto Socorro do Hospital das Clínicas.
“Já vi que o teu problema é sério”, comentou o negrão. “Como é que você, cego de um olho, vai voltar a trabalhar como segurança “Boa pergunta!”, respondeu ele. “Ainda bem que você é um sujeito sossegado. Fosse comigo, ia atrás daqueles putos e mandava bala.” “Como ir atrás se nem sei quem são eles?” “Mas eu sei!”, concluiu Geraldão, chegando ao ponto que interessava: “Um sujeito que tava lá na casa ontem à noite me contou que conhece eles. Trabalham numa agência do Banco do Brasil na Vila Mariana. Esses bancários de merda enchem os cornos e sempre aprontam no final de semana.”
Segunda-feira, logo depois do meio-dia, ele saiu do hospital e foi até a sua empresa. Sem que ninguém visse, apanhou sua arma de serviço e se dirigiu à tal agência do Banco do Brasil. Com o olho que lhe restava examinou o ambiente. Filas enormes de gente querendo acertar suas despesas do final de semana. Uma jovem funcionária, rápida e eficiente, se aproximava da mesa do gerente e lhe entregava uma pasta de documentos. Poderia ser a vagabunda gritona da noite de sexta, mas não teve certeza. Caminhou na direção dos caixas e lá estava, atrás de um guichê, o canalha de olhos azuis e nariz arrebitado. Ele não teve dúvidas, furou a fila, afastou delicadamente uma velhinha que estava sendo atendida e sapecou um tiro no olho azul direito do caixa.

domingo, 5 de julho de 2009

APRESENTAÇÃO

Meu nome é Ênio Gonçalves. Sou conhecido por algumas pessoas por conta da minha já longa carreira como ator de teatro, cinema e televisão, mas desde a minha distante infância sempre gostei de escrever ficção. Além de arte dramática, estudei jornalismo e, no início de minha carreira como ator, trabalhei na imprensa de Porto Alegre, Rio e São Paulo (onde tive a honra de trabalhar sob o comando de Samuel Wainer, na fase final da "Última Hora").
Escrevi umas quinze peças de teatro, metade das quais foram montadas em São Paulo por mim ou por outros diretores. Fui indicado ao Prêmio Shell como autor pela peça "Cachorro!" O engraçado é que, depois de mais de três anos apresentando esse espetáculo, apareceram mais duas peças com o mesmo título. Diz que isso pode! O que me sugeriu a idéia estúpida de escrever e representar um monólogo chamado "Trair e Coçar É Só Começar", mesmo correndo o risco de levar um tiro do grande Marcos Caruso, que já utilizou esse título com enorme sucesso.
Mas o foco deste blog são os contos, que sempre escrevi, fora dois romances que também estão na gaveta. Tive um conto publicado na saudosa revista "Ficção", mas diversas tentativas de estabelecer contato com editoras não deram em nada. É muita gente escrevendo. Compreende-se que as editoras não estejam recebendo originais para apreciação. E como não tenho padrinho...
Meu propósito é apresentar aqui, a partir de hoje, um conto por mês - e ficar à espera de alguma crítica ou apreciação.
Se por acaso você ler um dos meus contos, por favor, me dê retorno: pode malhar à vontade pra que eu caia na real.