domingo, 12 de julho de 2009

MEMÓRIA (1)

A primeira vez a gente nunca esquece...
Logo que cheguei ao Rio de Janeiro, no início da década de 60, saí atrás de trabalho como ator. Não conhecia quase ninguém, mas alguém me informou que a TV Continental empregava um grande número de atores em determinado teleteatro que ia ao ar ao vivo (claro, o videotape ainda não existia) nas noites de domingo. Portanto, no início da tarde do meu primeiro domingo na "Cidade Maravilhosa", dirigi-me aos estúdios da emissora, que funcionavam na rua das Laranjeiras.
Naquele tempo não tinha nada de crachá e você entrava em qualquer emissora sem precisar se identificar. No pátio, um assistente qualquer perguntou-me se eu gostaria de participar do teleteatro daquela noite e eu respondi que sim, claro! Na verdade, fiquei apavorado, porque minha experiência como ator era mínima: quatro pontinhas em peças na escola de teatro em Porto Alegre ("Egmont" de Goethe, uma comédia del'Arte, "O Telescópio" de Jorge Andrade e "Matar" de Paulo Hecker Filho). Custei a perceber, com um certo alívio, que iria fazer uma figuração, sem fala, no meio de mais uns trinta figurantes numa cena de batalha.
Nunca tinha entrado num estúdio de tevê e fiquei encantado com aquelas luzes, cenários e figurinos. Era um drama de época, possivelmente baseado em algum romance histórico inglês. Depois de me enfiar na minha roupa de arqueiro do rei, fiquei assistindo aos ensaios. O diretor era um rapaz de Minas Gerais chamado Helvécio (que, desconfio, me dirigiu num "comercial" em Belo Horizonte, duzentos anos depois!) e a estrela, mulher do diretor, chamava-se Magda. O galã também era mineiro: um talentoso ator da minha idade, Paulo Célio, que poucos anos depois morreu de leucemia. Do meu canto, observei encantado a atividade daquele bando de atores, dentre os quais Francisco Milani, Joana Fomm, Jardel Mello, Ênio Santos e Maurício do Vale (o grande ator glauberiano, de quem me tornei amigo anos mais tarde, em São Paulo, quando ele, casado com uma advogada, morou na rua Cesário Mota). O que me espantava era como aquela gente podia decorar tanto texto e viver tão bem aqueles personagens com tão pouco ensaio.
À noite, depois de um sanduíche e um refrigerante oferecidos aos mortos de fome da figuração, foi ao ar o grande drama em três atos registrados por diversas câmeras enormes, verdadeiros trambolhos que os cameramen conduziam com notável perícia: cada vez que mudavam de lente, tinham que desencaixar uma e introduzir a outra, provocando um forte estalido que, estranhamente, os microfones nunca captavam. Fiquei particularmente encantado com uma cena em que o herói subia por uma corda pelo muro do castelo; na realidade, a parede estava no plano horizontal e tudo não passava de um truque devido à posição da câmera e à mímica do ator. Ainda outro dia vi na tevê uma chamada de Batman e Robin ilustrando a mesma situação, e foi aí que tive a idéia de escrever este depoimento.
Na famosa cena da batalha em que eu devia estrear na tevê, havia grande tumulto com câmeras, microfones e figurantes correndo de um lado para o outro. De repente, como uma barata tonta, percebi que estava no lugar errado, no meio dos inimigos, quando deveria estar com a minha turma. Corri para o meu lado, mas tive que passar pela frente de uma câmera. Acabada a cena, no intervalo comercial, levei um pito do cameraman, aprendendo assim a minha primeira lição de tevê: "nunca faça o papel de bobo passando pela frente de uma câmera que esteja no ar."
No final da emissão, o tal assistente me avisou que eu deveria receber o meu cachê dali um mês. Nisso chegou até nós um dos atores principais da telepeça, acho que foi o meu xará Ênio Santos (se não foi ele, foi o Álvaro Aguiar). Examinou-me dos pés à cabeça e explicou: "Estou fazendo um filme e esta noite vamos fazer uma cena importante em que eu, como cirurgião, opero os olhos da mocinha. A produção do filme me encarregou de arranjar um anestesista. Acho que você tem o tipo. Topa fazer?" Claro que topei! Num período de poucas horas, menos de uma semana fora da província, e eu já estava estreando na tevê e no cinema. Era mais do que eu sonhava. Êta cara de sorte!
Pegamos o carrinho humilde do meu xará -e me surpreendi que um ator tivesse condições financeiras de ter um automóvel mesmo naquele estado. Antes da novela de tevê tomar impulso, pouca gente queria ser ator porque teria de andar a pé e, quando muito, de ônibus.
Fomos até um hospital na Praia Vermelha. Numa sala de operações, a luz forte já estava sendo armada. Tratava-se de um filme colorido e em eastmancolor, o que não era pouco naquela época. O melodrama "Teus Olhos Castanhos" era baseado numa música de sucesso do cantor português Francisco José, que também era o galã do filme. A gaúcha Ilza Silveira -grande figura humana que, mais tarde, me daria força na TV Tupi do Rio -era responsável pela adaptação. Ruy Guerra tinha feito o roteiro. A mocinha cega, que voltava a enxergar depois da tal operação, era vivida por Aracy Cardoso. O diretor era outro gaúcho, Ibañez Filho. Mas quem comandava tudo mesmo, pelo menos naquela noite, era o assistente de direção, Sanin Cherques. Extremamente gentil, ele instruía tanto os atores quanto a equipe técnica.
Ganhei um primeiro plano manipulando o controle da anestesia e, apesar da máscara cirúrgica que me escondia a boca, fui identificado pelo meu irmão Evaldo, quando o filme foi exibido em Porto Alegre. Até hoje guardo telegrama que ele me enviou me parabenizando pela participação no filme.
A filmagem atravessou a noite. Quando saí do hospital naquela segunda-feira, um sol glorioso já tinha nascido, era um daqueles dias de verão cuja beleza é exclusividade do Rio. Enquanto esperava a lotação que ia me levar pra Copacabana, exausto e feliz da vida, fiquei analisando o meu primeiro passo naquele universo que eu sempre quisera penetrar, nem que fosse como varredor de estúdio, moleque de recado ou puxador de cabo.
Levei cano tanto da TV Continental quanto do filme. Naquela época, era muito comum o ator não receber o pagamento devido. Muitos canos vieram depois daqueles dois. E a verdade é que isso acontece até hoje. Mas nunca me arrependi de ter dado aquele primeiro passo.

2 comentários:

  1. Olá, Ênio, que bom poder ler os seus textos neste blog. Fantástica esta narração de suas memórias. E foi só você falar em "puxador de cabo" para eu me lembrar do Ademildo, que você interpretou com tanto brilho em "A Volta do Regresso". Também fico feliz por não estar nesse rol dos empregadores que deram "canos", apesar de infelizmente o nosso cachê ter sido tão pequeno e as condições da produção, tão amadorísticas. E eu não sabia que você tinha trabalhado com jornalismo, "mal" do qual compartilho. Grande abraço e até breve.

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  2. Olá! Em primeiro lugar, quero parabenizá-lo pelo texto interessante que você escreveu.
    E, em segundo lugar, fiquei muito surpresa e feliz quando o li e vi que você conheceu Paulo Célio!
    Eno, eu era uma quase menina quando me encantei por esse ator dos olhos verdes... Vi-o pela primeira vez recebendo o prêmio de "O Melhor da Semana", com o monólogo "Neurose de Guerra" e, daí em diante, nunca mais deixei de acompanhar o seu trabalho na extinta TV Continental.
    Perto de onde eu residia, morava um também ator chamado Vanderlei Farias, que trabalhava com Paulo Célio num seriado bíblico que a Continental exibia aos domingos. e, certa tarde, abordei Vanderlei (apesar da minha enorme timidez) e pedi se ele poderia levar um bilhete meu para Paulo Célio. E todos os domingos eu esperava Vanderlei passar e perguntava por Paulo Célio. Vanderlei então disse que daria um jeito para eu conhecê-lo. Tinha eu 13 anos... Fiquei muito feliz, mas, infelizmente esse encontro não aconteceu... Paulo Célio morreu muito jovem, aos 21 anos, e isso foi um choque imenso para mim, que passei a ter insônia constantemente.
    Ênio, gostaria muito se você pudesse me enviar alguma coisa sobre Paulo Célio! As fotos que eu tinha dele eram cortadas de revistas e, com o passar do tempo, rasgaram-se... Você teria uma foto do Paulo Célio para me mandar por e-mail?
    Meu e-mail é: lyracigana@gmail.com
    Ficarei muito contente se você puder atender ao meu pedido.
    Grande abraço.

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