terça-feira, 7 de julho de 2009

CONTO (1)

OLHO POR OLHO

Foi numa sexta-feira chuvosa de inverno, no início dos anos oitenta, época em que ainda não havia detector de metais nas portas dos bancos - e esse detalhe é fundamental para a credibilidade da história que está sendo contada.
Nessa noite ele entrou numa casa de samba em Pinheiros, acomodou-se numa banqueta junto ao balcão e pediu ao barman um uísque com gelo. Ele tinha sido amigo de infância do gerente e por isso tinha o costume de frequentar a casa. Não era exatamente um boêmio, mas como só trabalhava à tarde – como segurança numa empresa de transporte de valores - às vezes ia procurar o amigo a fim de bater papo, ouvir música, beber alguns uísques de graça e, principalmente, arranjar companhia feminina. Observou o ambiente e logo percebeu que a situação não era nada propícia ao seu habitual objetivo: nessa noite gelada havia pouca gente e muito mais homem que mulher. Seu consolo foi ficar ali escutando Lupicínio Rodrigues na voz poderosa da grande atração da casa, um negrão de quase dois metros de altura chamado Geraldão, que apresentava-se sozinho solando o seu violão.
Perguntou do amigo gerente a um garçom e foi informado de que ele não viria trabalhar porque estava de cama por conta de um forte resfriado. “Resfriado coisa nenhuma”, interveio o barman. “De vez em quando ele vem com essa conversa. Deve tá com alguma mulher. Mas quem pode, pode. Se eu der uma dessa, perco o emprego.” Ele apenas sorriu porque sabia que seu amigo, apesar de homem sério, era um tremendo mulherengo. Nisso eles se pareciam e talvez por isso se dessem tão bem.
Nesse momento dois ou três rapazes e uma moça aproximaram-se do balcão às gargalhadas, já bem calibrados. Geraldão, lá do seu poleiro diante do microfone, começou a se impacientar com a algazarra que cada vez mais prejudicava sua atuação. Pavio curto, ele costumava partir pra cima dos bêbados que extrapolavam em atrapalhar sua performance. De repente ele não conseguiu mais se conter e esbravejou no microfone: “A noite é uma merda! Ninguém respeita o artista.” Dito isso, botou o violão nas costas e, dirigindo-se para o banheiro, sentenciou: “Vou mijar.”
Logo depois foi a vez do barman perder as estribeiras, acusando os rapazes e a moça de terem se apossado de uma garrafa de uísque que estava sobre o balcão. Como a casa não tinha leão de chácara, o barman convocou a meia dúzia de garçons para expulsar os bagunceiros. Geraldão não se fez de rogado e veio junto “Deixa comigo!”, disse ele. “Eu resolvo sozinho essa parada!” Logo abriu os braços como se fossem os tentáculos de um polvo, envolveu o grupelho e o arrastou para a rua.
Meia hora mais tarde e três uísques pendurados, que depois seu amigo gerente iria aliviar, ele saiu da casa de samba. A noite não ia render nada mesmo, o negócio era ir pra casa dormir. Foi andando todo encarangado debaixo da garoinha miúda e fria.
Quando ia abrindo a porta do carro, sentiu-se agarrado por uma gangue violenta. A moça gritava histericamente: “É ele! É o gerente! É ele mesmo!” “Que gerente nada! Eu sou freguês! Sou freguês como vocês!”, defendia-se ele, tentando se soltar dos rapazes. “Filho da puta!”, rugia a moça. “Você é o gerente! Tava lá no balcão e denunciou a gente!” E não adiantou ele jurar por tudo o que era mais sagrado que não era o gerente, porque os três rapazes desceram-lhe o cacete. Enquanto dois o seguravam pelos braços, o terceiro enchia-o de socos e pontapés. E a moça açulando: “Bate! Bate mais!” Apertado contra o carro, completamente imobilizado, sentiu seu olho direito estourar. Nisso a luz de um poste incidiu sobre o rosto do rapaz que batia e, com a visão do olho que ainda lhe restava, pode registrar, como se fosse um flash fotográfico, as feições do maldito agressor: devia ter uns vinte e poucos anos, olhos azuis e o nariz arrebitado. Seu corpo amoleceu e ele parou de se debater. Julgando que a vítima estivesse entregue, os algozes o soltaram. Num salto inesperado, ele saltou para o meio da rua e correu. Os outros quatro, ainda não satisfeitos, vieram-lhe atrás.
Na esquina havia um botequim ainda aberto e ele o invadiu em busca de refúgio. O dono do bar e alguns pinguços que estavam por ali não esboçaram nenhuma reação quando ele apanhou uma faca de cozinha que estava sobre o balcão. Já os quatro agressores, ao verem a faca apontada na sua direção, não ousaram entrar no bar. Ficaram na porta ameaçando e dizendo palavrão. O rapaz de nariz arrebitado catou uma pedra da calçada e ameaçou atirar em cima dele. “Se acertar o vagabundo, tudo bem!”, avisou o português. “Mas se quebrar um copo aqui dentro, vai ter pra vocês!” Aí eles desistiram e foram embora dizendo que iriam “arrebentar com o carro desse gerente filho da puta”.
“Se eles queriam te pegar é porque alguma coisa você fez”, comentou o português. “Vai ver, tu tá devendo, malandro!”, emendou um pinguço.
Só estava enxergando de um olho e precisava de ajuda. Era evidente que, naquele botequim infecto, ninguém iria socorrê-lo. Portanto, depois de se certificar de que, lá no meio do quarteirão, a gangue concentrava-se em depredar o seu carro, correu de volta à casa de samba. Mal explicou ao pessoal o que tinha acontecido, suas pernas bambearam e ele desmaiou.
No dia seguinte, já sabendo que tinha perdido o olho direito, recebeu a visita de Geraldão no Pronto Socorro do Hospital das Clínicas.
“Já vi que o teu problema é sério”, comentou o negrão. “Como é que você, cego de um olho, vai voltar a trabalhar como segurança “Boa pergunta!”, respondeu ele. “Ainda bem que você é um sujeito sossegado. Fosse comigo, ia atrás daqueles putos e mandava bala.” “Como ir atrás se nem sei quem são eles?” “Mas eu sei!”, concluiu Geraldão, chegando ao ponto que interessava: “Um sujeito que tava lá na casa ontem à noite me contou que conhece eles. Trabalham numa agência do Banco do Brasil na Vila Mariana. Esses bancários de merda enchem os cornos e sempre aprontam no final de semana.”
Segunda-feira, logo depois do meio-dia, ele saiu do hospital e foi até a sua empresa. Sem que ninguém visse, apanhou sua arma de serviço e se dirigiu à tal agência do Banco do Brasil. Com o olho que lhe restava examinou o ambiente. Filas enormes de gente querendo acertar suas despesas do final de semana. Uma jovem funcionária, rápida e eficiente, se aproximava da mesa do gerente e lhe entregava uma pasta de documentos. Poderia ser a vagabunda gritona da noite de sexta, mas não teve certeza. Caminhou na direção dos caixas e lá estava, atrás de um guichê, o canalha de olhos azuis e nariz arrebitado. Ele não teve dúvidas, furou a fila, afastou delicadamente uma velhinha que estava sendo atendida e sapecou um tiro no olho azul direito do caixa.

Um comentário:

  1. Oi, Enio
    Quem escreve é Eliana Iglesias, colega sua de escrita. Sou amiga da Mara no Orkut e agora estou no teu blog sugerido por ela. Gostei muito do Olho por Olho. Desde nosso curso na TV Cultura, com o Chico, que aprecio muito o que vc escreve. Esse conto gerou o meu interesse e eu queria continuar a ler. é isso aí. Vou ler os outros. abs eliana

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