segunda-feira, 25 de outubro de 2010

VALENTE

Para o mestre Antunes Filho, que aprecia esta história.

“É estranho mas verdadeiro, pois a verdade é sempre estranha – mais estranha que a ficção.”
Byron, em “Don Juan”.


Orozimbo Valente, O. Valente, Valente ou, simplesmente, Vale, é considerado o maior ator rodrigueano do nosso teatro. Milton Morais, Jorge Dória, Osvaldo Loureiro, José Maria Monteiro, Nélson Caruso, Ivan Cândido, Jece Valadão e tantos outros grandes atores interpretaram Nélson Rodrigues e souberam tirar proveito do “prato cheio” que os textos do nosso maior autor teatral oferece aos seus intérpretes. Mas Valente é imbatível. Quem o viu em “Os Sete Gatinhos”, em “Álbum de Família” ou em “Bonitinha mas Ordinária”, jamais esquecerá a verve, o humor corrosivo, a truculência e a dramaticidade que emanava daquela figura enorme e poderosa.
E Valente propiciou a um jovem ator uma experiência inusitada: durante um espetáculo, diante de uma platéia lotada, ele foi apresentado a um colega que ele nunca tinha visto antes e de quem nem sequer tinha ouvido falar.

Nélson Rodrigues teve seus primeiros textos montados no Rio de Janeiro na década de quarenta, mas em São Paulo, até os anos setenta – ao contrário de que ocorre hoje - o genial autor era mal recebido em montagens esporádicas que vinham do Rio. Dizia-se que Nélson não fazia sucesso em São Paulo, da mesma forma que Abílio Pereira de Almeida, do TBC paulista, não era bem aceito no Rio. Até mesmo o grande Ziembinski – quem primeiro descobriu a genialidade de Nélson - tivera a ousadia de montar “O Boca de Ouro” em São Paulo, reservando para si o personagem protagonista, o que resultou em retumbante fracasso: público e crítica não aceitaram aquele bicheiro carioca falando com sotaque polonês.
Foi então que uma atriz e produtora resolveu correr o risco de montar “Bonitinha mas Ordinária” em seu teatro de São Paulo.
Depois de alguns testes, o nosso jovem ator foi escolhido para representar Edgar, o herói da peça, que é obcecado por uma frase do Otto Lara Resende: “O mineiro só é solidário no câncer.” Para o personagem do dr. Werneck, que se opõe a Edgar, o diretor do espetáculo fez questão de trazer do Rio de Janeiro um ator por quem ele tinha admiração, o grande Valente, que por sinal já tinha feito o personagem na primeira montagem da peça, no Rio, em 1962.
Como Valente já conhecia bem o personagem, ele só chegou a São Paulo na segunda ou terceira semana de ensaios. Veio acompanhado da mulher e de um cachorrão de estimação, sendo instalados num apartamento no mesmo prédio do teatro. Segundo o administrador da companhia, a idéia de manter Valente por perto era proposital, já que ele carregava a fama de ser temperamental. Hoje diríamos que, apesar de também ser psicanalista, o grande ator sofria de “transtorno bipolar”.
Naturalmente que na classe teatral a lenda de Valente já era bem conhecida. Além da carreira de ator, ele sempre tivera o sonho de ser médico. Dizem que cursou medicina durante uns vinte anos, formando-se com mais de cinqüenta, e agora com mais de sessenta anos nas costas também exercia a profissão de médico psicanalista num hospital público. “Só um louco faria a loucura de que se tratar com o louco do Valente”, diziam as inumeráveis más línguas do teatro.
Outro fato curioso referia-se ao nome artístico de Valente. Ele odiava o nome que recebera na pia batismal: Orozimbo. Tanto assim que, em seus primeiros trabalhos como ator, ele assinava apenas O. Valente. Mais tarde passou a ser apenas Valente. E ai de quem o chamasse de Orozimbo! Dizem que o homem partia pra briga.
Tudo transcorreu normalmente durante os ensaios do espetáculo. Os problemas começaram a acontecer logo depois da estréia. Uma hora antes da peça começar, Valente descia do seu apartamento e ia tomar uma biritas no botequim que ficava ao lado do teatro. Assim ele conseguia driblar a mulher, uma santa senhora, que o tratava com zelo maternal mas sob rédea curta. Todos que participavam do espetáculo, e que reverenciavam o extraordinário ator, começaram a estranhar o seu crescente mau humor.
Certo dia, Valente pediu pra ter uma conversa séria com o diretor.
“O jovem ator me olha no fundo dos olhos!”, reclamou Valente.
“E isso não é bom?”, estranhou o diretor.
“Não naquela cena!”, gritou Valente.
Na tal cena, o dr. Werneck diz a Edgar com violência: “Você vai casar com a minha filha, mas não se esqueça que você é um ex-contínuo!”. Ao que Edgar responde: “Tá certo. Eu sou um ex-contínuo. E você é um filho da puta. Seu filho da puta!” Nisso a luz cai encerrando a cena com grande impacto.
Valente argumentou que o jovem ator levava a ofensa para o plano pessoal, chamando ele, Valente, de filho da puta.
Claro que não se tratava disso. Pelo contrário, o jovem ator tinha respeito e admiração pelo colega veterano.
Nélson Rodrigues é sempre enxuto, econômico, preciso. Não exatamente como hoje, em que se corta e se adapta Nélson a torto e a direito, naquela época mexer num texto do autor seria uma heresia que ele não permitiria. No entanto, a fim de acalmar Valente, o diretor pediu que Edgar evitasse o “filho da puta” e o chamasse de “bosta”: “Eu sou um ex-contínuo e você é um bosta. Seu bosta!”. O jovem ator, claro, aceitou a ordem, mesmo sabendo que a cena perdia o impacto, porque nada como o palavrão adequado na hora certa.
Não adiantou grande coisa a mudança do texto. Valente continuou chegando em cima da hora, enchendo com bafo de bebida o pequeno camarim que dividia com o jovem ator. Um silêncio pesado se estabeleceu entre os dois, acentuado pela timidez do jovem ator diante do mau humor daquele monstro sagrado. Alertada pela produção ou porque o próprio Valente comentasse alguma coisa em casa, sua mulher esperou certo dia o jovem ator na porta do teatro.
“Desculpe o Vale, meu filho. Ele tá com alguns problemas. Ele é como uma criança. Desculpe ele”, disse a mulher. O jovem ator ficou tão sem graça que nem soube o que responder. Sua admiração pelo grande ator sempre permanecera a mesma.
Até que, certa noite, Valente não apareceu no teatro. O administrador da companhia subiu até o apartamento do ator e descobriu que, momentos antes, ele tinha ido pra rodoviária com a mulher e o cachorro. Ele voltava para o Rio sem avisar ninguém.
Já eram quase nove horas da noite e um bom público aguardava na sala de espera o início do espetáculo, que seria suspenso, claro. Aí veio uma notícia surpreendente. Havia um outro ator que iria fazer o papel de dr. Werneck a partir daquela noite. E esse ator chamava-se Evilásio Marçal.
O jovem ator ficou pasmo. Primeiro a inesperada fuga de Valente. Depois esse outro ator, que surgia do nada pra salvar a continuidade imediata do espetáculo. Ele nunca tinha visto e nem nunca tinha ouvido falar desse tal Evilásio Marçal. Como é que um sujeito desconhecido ia entrar no espetáculo assim de repente, num papel tão difícil e sem nenhum ensaio?
Foi então que a produtora explicou o que estava acontecendo. Desde que Valente começara a dar problemas, ela contratara alguém para substituí-lo: um ator do teatro de revista, a quem o diretor do espetáculo também admirava. Fazia algum tempo que Evilásio assistia aos espetáculos. Tinha decorado o texto e as marcações. Como Valente o conhecia, Evilásio se escondia no fundo da platéia, a fim de não despertar nenhuma desconfiança no outro a respeito de sua possível substituição. Avisado por um telefonema, ele já estava a caminho do teatro, vestindo o seu figurino de cena, um smoking.
Agora já eram mais de nove e meia, o público se impacientava. Quando Evilásio apontou na porta do teatro, o espetáculo teve início. Havia uma passagem por cima da platéia que Evilásio utilizou, enquanto transcorriam as primeiras cenas de Edgar. Por isso, o jovem ator e o estreante não se encontraram nos bastidores. Até o momento em que o dr. Werneck entra em cena por um lado do palco, Edgar pelo lado oposto, e são apresentados um ao outro. “Edgar, quero te apresentar o teu futuro sogro, o dr. Werneck”, diz o cafajeste do dr. Peixoto, que tinha planejado aquele estranho casamento.
Assim o jovem ator acabou conhecendo Evilásio Marçal no palco e na vida real, ao mesmo tempo. Ele tinha imaginado que, ao entrar em cena, iria encontrar um sujeito grandalhão como Valente, mas, ao contrário, Evilásio era baixinho. E, no final dessa cena, o texto ofensivo à mãe do dr. Werneck pode ser retomado sem nenhum problema.
Sem nunca ter ensaiado com o elenco, Evilásio não errou nenhuma fala ou marcação,
neste ou nos outros espetáculos que se seguiram por mais alguns meses. Fora de cena, era um sujeito extremamente gentil. Tinha um emprego público e vestia-se sempre de terno e gravata. Depois que a peça saiu de cartaz, o jovem ator nunca mais o viu e nem teve notícias dele. E até hoje – não fosse o testemunho de outras pessoas que conheceram Evilásio Marçal – tem a impressão de que ele não passa de uma miragem com que uma vez contracenou.
Quanto ao problema de Valente, que não conseguia suportar a agressão verbal à mãe do seu personagem, logo surgiu uma possível explicação. Parece que, pouco antes de voltar para o Rio, sob os efeitos do álcool, o ator teria revelado a alguém da produção que, quando menino, vivera nas proximidades da avenida São João, no centro de São Paulo, onde sua mãe fazia a vida. Se isso for verdade, o fato é bastante curioso: o psicanalista dr. Orozimbo Valente não conseguiu superar o seu próprio trauma infantil. Situação dramática bem rodrigueana.

Depois de “Bonitinha mas Ordinária, o jovem ator encontrou Valente apenas mais uma vez. Alguns anos mais tarde, no Rio de Janeiro, visitando uma amiga que morava na rua Piragibe Frota Aguiar, que limita Ipanema e Copacabana, ele foi até a janela do apartamento examinar o belo sol de verão que fazia lá fora. Como esta rua é muito estreita, sua atenção foi logo despertada por um homem gordo, de bermuda e sem camisa, que brincava com um cachorro na sala de um apartamento em frente. De repente o homem veio até a janela e deu de cara com o jovem ator que o observa com curiosidade. Houve um instante de embaraço e os dois acabaram se reconhecendo. O jovem ator, em sua timidez, não sabia o que fazer, talvez fugir da janela, como se nada tivesse acontecido. Foi salvo porque Valente sorriu pra ele, ao mesmo tempo em que lhe enviava um gesto da saudação.
Foi um gesto de adeus. Poucos dias depois, já em São Paulo, o jovem ator soube pelos jornais que o grande Valente tinha falecido repentinamente no dia anterior. Que ele descanse em paz!

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

NA JANELA

“O medo foi a primeira coisa que os deuses criaram no mundo.”
Statius, em “Tebaida”.

A velha senhora acabou de sair do supermercado e agora arrasta o carrinho de compras em direção ao seu apartamento. São três quadras pela calçada meio esburacada. Em sua direção vem um rapaz barbudo, que faz parte do bando de moradores de rua que há alguns dias se instalou por debaixo das marquises daquela rua.
Depois de se cruzarem, a velha senhora desconfia que o rapaz parou e que virá atacá-la pelas costas. Ela se vira e vê o rapaz parado junto ao meio-fio.
“Que é que tá olhando, velha?”, pergunta o rapaz. “Tu qué apanhá?”
Ainda mais assustada, a velha senhora prossegue o seu caminho o mais rápido que pode, com medo que o rapaz venha ao seu encalço.
Ela mora sozinha num apartamento térreo do pequeno edificio. A janela do seu quarto-sala dá diretamente para a calçada. Antes de dormir, ela costuma ler na cama algum livro da coleção “Sabrina”, pra espantar as idéias tristes. Alguém bate na janela e a velha senhora, como sempre, leva um susto. Pode ser algum vizinho, algum parente. Ela abre uma fresta na janela protegida por uma grade de ferro. Lá está o rapaz barbudo.
“Pelo amor de Deus, a senhora não me arranja um prato de feijão com arroz?”, pergunta ele. “Eu tô morrendo de fome.”
A velha senhora sente pena do pobre coitado. Espírito generoso não lhe falta: faz poucos dias, a pedido do pároco da igreja de São João, ela acompanhou a caminhada final dos “sem terra” pela avenida Farrapos até o Palácio Piratini, no centro de Porto Alegre.
“Posso te oferecer café com leite”, diz ela. “Espera um pouquinho que eu vou esquentar o leite.”
Ela apanha no armário uma caneca de metal que tinha comprado na loja de 1,99 e que ainda não tinha usado. Através da grade, ela entrega ao rapaz a caneca de café com leite e um pãozinho com manteiga.
“Olha”, diz o rapaz depois de se alimentar, “a senhora tem que lavá bem essa caneca, lavá com água quente e sabão, porque eu tenho HIV.”
A velha senhora tem um momento de hesitação e depois devolve a caneca ao rapaz, dizendo:
“Fica com ela. Assim, quando tu precisar de uma caneca, tu já tem.”
Na noite seguinte, luz acesa no quarto, o rapaz bate novamente na janela. A velha senhora atende.
“Quero lhe pedi um favor”, diz o rapaz. “A senhora pode me emprestá um pouco de gel pra passar no cabelo? Resolvi fazê uma visita pra minha mãe e quero ir com as melena bem penteada.”
A velha senhora vai até o banheiro e volta com um pote de brilhantina que foi deixado ali por um sobrinho há mais de trinta anos.
“Pode ficar com o potinho”, diz ela.
“Muito obrigado, senhora”, diz o rapaz. “Sabe, vou visitar a minha mãe por causa da senhora.”
“Como assim?”
“A senhora se parece muito com a minha mãe, tem a cara dela. Por isso, fiquei com saudade dela. Amanhã vou procurar por ela.
“Vai, meu filho, vai sim. Tua mãe vai cuidar de ti. Estás precisando dela”, encerra a velha senhora, já fechando a janela.
“Só mais um favor”, diz o rapaz. “A senhora não me empresta vinte reais pra eu pegá o ônibus? A minha mãe mora no interior, em Osório.”
Então a velha senhora vai até a cozinha e apanha vinte reais de dentro de um açucareiro, onde esconde o dinheiro que recebe do INSS.
Na terceira noite, a velha senhora está lendo na cama “O Grande Amor de Eduarda” quando batem na janela. Ela desliga a luz. Lá da rua, o rapaz grita:
“Não adianta tu apagá a luz, velha! Eu sei que tu taí!”

domingo, 22 de agosto de 2010

O FIGURANTE

“Desejar a imortalidade é desejar a eterna perpetuação de um grande erro.”
Schopenhauer


No dia anterior, a produção do filme tinha me avisado que, finalmente, iríamos rodar a sequência do cemitério, que ainda faltava para a conclusão da filmagem. A dificuldade tinha sido conseguir autorização oficial de algum cemitério da cidade pra que um bando de atores, técnicos e figurantes perturbassem o sono eterno dos que “já fizeram a passagem”, como diz um amigo meu. O cemitério seria em Perus, na Grande São Paulo.
Outro problema a ser solucionado tinha sido a questão do tempo. O diretor do filme queria um enterro debaixo de chuva, pois sabia que toda a cena de enterro que se preze tem que ter chuva e guarda-chuva. Como o serviço de meteorologia estava prevendo um dia de sol, a produção fez um grande esforço e conseguiu a promessa do corpo de bombeiros de Perus de enviar uma guarnição para produzir uma chuva artificial.
Portanto, aí pelas oito horas da manhã seguinte, uma Kombi entrou pela rua principal do cemitério trazendo a mim e mais meia dúzia de atores que participariam da filmagem. Fomos descarregados junto a um jazigo de mármore cuja imponência contrastava com a humildade dos demais túmulos, alguns apenas cobertos de terra. Toda a sequência deveria ser rodada ao redor desse túmulo majestoso guarnecido por um enorme anjo de asas abertas.
Perto dali, uns trinta figurantes já nos aguardavam, vestindo os seus melhores trajes, já que a produção paupérrima não lhes fornecia o figurino. E o enterro tinha de ser chique: o falecido era um velho industrial riquíssimo que deixava uma grande fortuna que iria ser disputada pelos herdeiros. Meu personagem era o de um safardana casado com uma filha do morto.
Nesse primeiro momento, olhamos aquela infinidade de túmulos com enorme respeito, com aquele ar compungido que sempre temos diante da morte. Em situações como essa, somos praticamente obrigados a fazer uma reflexão sobre a nossa curta existência e o nosso fim. Percebi isso ao observar o comportamento da velha atriz que interpretava a viúva do industrial: ela se benzeu e murmurou uma rápida oração. Devia estar pensando em sua própria morte, o que de fato ocorreu alguns meses depois, antes mesmo do filme entrar em exibição. Ela tinha sido uma grande estrela no início da Tevê Tupi e agora, melancolicamente, estava encerrando sua carreira como coadjuvante numa pornochanchada da Boca do Lixo.
Daí a pouco, o caminhão de bombeiros chegou e apenas ficou por ali de sobreaviso, pois o tempo tinha mudado, começava garoar. Os cinco ou seis bombeiros ficaram sentados sobre o caminhão observando com curiosidade a atividade da equipe de filmagem. O tenente de meia idade que comandava a guarnição aproximou-se da velha atriz e pediu um autógrafo: “Pra minha mãe, que é sua fã”, explicou ele.
Pouco depois começamos a ensaiar a primeira tomada. A laje que cobria a cova tinha sido retirada, para que o caixão baixasse sob as nossas vistas. Nós, atores, fomos colocados diante da câmera, o caixão em primeiro plano, enquanto que a figuração foi convocada para se posicionar às nossas costas. Quando o grupo de figurantes se aproximou, o diretor do filme – um sujeito de maus bofes e extremamente ferino – avaliou a indigência do que tinha para realizar sua grande obra, e comentou: “Mas olha só os amigos que o finado tinha!”
Mas um determinado figurante chamava a atenção. Magro e alto, bem vestido num terno elegante, foi colocado pelo assistente de direção justamente atrás de mim e da bela atriz que interpretava minha mulher. Na hora de rodar a cena, olhei para trás e percebi que ele sabia se posicionar muito bem ali, como um profissional, um autêntico “papagaio de pirata”. O que estaria fazendo ali, no meio daquela bugrada, um sujeito tão fino, com pinta de executivo bem sucedido?
Câmera rodando, no meio da cena, “minha mulher” deu um grito, interrompendo a filmagem. “Um filho da puta passou a mão na minha bunda!”, disse ela.
Fulo da vida, o diretor olhou para o nosso figurante e vociferou: “Mais respeito, cara! É por isso que o cinema nacional não vai pra frente... Tô de olho em você! Como é o seu nome?”
“Robério de Souza, um seu criado”, respondeu o sujeito com a cara mais inocente deste mundo.
“Só te mantenho no filme porque você é o único desses figurantes de merda que tem panca de rico! Se não, te mandava pra puta que o pariu!”, explodiu o diretor.
“Obrigado por não me despedir, senhor”, agradeceu o figurante fazendo uma elegante reverência. “Muito obrigado por me deixar realizar o sonho da minha vida, que é ser ator de cinema que nem o Rodolfo Valentino.”
Surpreendido por uma resposta tão gentil e sem saber quem era Rodolfo Valentino – talvez algum jovem galã da Tevê Globo? – o diretor se desarmou e encerrou o assunto: “Então bola pra frente! Vamo rodá!”
A partir daí, o trabalhou transcorreu normalmente. As pessoas foram se descontraindo e até esquecendo de que estavam num cemitério. Passou o cortejo de um enterro com acompanhantes chorando e o pessoal do filme não tomou conhecimento: continuaram falando alto e às gargalhadas, como se estivessem num botequim. A velha atriz contava para a maquiadora um episódio interessante que acontecera com ela na noite em que a Tevê Tupi foi ao ar pela primeira vez: o manda-chuva da emissora tinha passado a mão na bunda dela, exatamente como acabou de acontecer. De repente, um ator que deveria participar da próxima tomada desapareceu; o assistente de direção saiu a sua procura e foi encontrá-lo atrás de um túmulo em intimidades com um bombeiro. Na hora do almoço, comemos nossas “quentinhas” sentados sobre os túmulos, tão à vontade como se estivéssemos no restaurante Gigetto. Que falta de respeito!
Certo momento, vi o tal Robério de Souza se aproximar da “minha mulher” e conversar com ela. Logo depois ela me explicou: “O sujeito veio me pedir desculpas. Disse que não conseguiu resistir porque minha bunda é muito bonita. Olha só que cara de pau!”
No final da tarde, tínhamos acabado de rodar o filme. Antes de me dirigir a Kombi, que já manobrava para nos trazer de volta a São Paulo, me bateu a curiosidade de saber quem era o ocupante do túmulo que nos servira de cenário. Fiquei pasmo! O mármore estampava uma pequena foto esmaltada do nosso figurante, além do nome Robério de Souza, datas de nascimento e morte, e as palavras de praxe, “descanse em paz” etc.
Não gosto e nem tenho o hábito de me ver na tela, mas fiz questão de assistir o filme quando ele foi exibido alguns meses mais tarde. Robério de Souza não aparece na sequência do cemitério como meu “papagaio de pirata”. Sumiu.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

O DUBLADOR

“Se um cego guiar outro cego, os dois cairão num buraco.”
Evangelho segundo s. Mateus, cap.5, v.14


Era só Abelardinho e a mãe neste mundo, morando no apartamento quarto-sala conjugado do edifício 200 da Barata Ribeiro, o mais famoso “balança” do Rio de Janeiro no final da década de 60.
Primeiro, ele viera sozinho do sertão cearense. Depois de três anos de luta pela sobrevivência, trouxera a mãe, já quase cega naquela époc a, o sol inclemente da seca lhe queimara as retinas.
Lá na cidadezinha do sertão, Abelardinho tinha visto alguns filmes da Atlântida e ficara fã de José Lewgoy. Achava o máximo a voz e o bigode do famoso vilão do cinema nacional. Anselmo Duarte e Cyll Farney não lhe diziam nada, muito menos Eliana ou Fada Santoro. Daí nasceu sua vontade de se tornar ator de cinema. Sendo assim, “pegou um ita no norte e veio pro Rio morar”, seguindo o exemplo de Dorival Caymi.
Agora trabalhava como atendente no Banco Nacional em Copacabana, perto de casa. Nas horas vagas corria atrás da carreira artística, no cinema, no teatro e na televisão. Mas não conseguia penetrar naquele universo maravilhoso, talvez por causa da cara feia e do corpo desajeitado, como ele mesmo acreditava. Na verdade, era um sujeito despreparado, com uma visão ingênua do que seria a profissão de ator.
Acontece que no 200 também morava um artista famoso – famoso no prédio, pelo menos -, Eduardo Del Dongo, que atuava nos teleteatros da Tevê Tupi, além de ser dublador de filmes estrangeiros. Um dia Abelardinho cruzou com ele no elevador do prédio e logo se enturmou. Penalizado com a situação do vizinho aspirante a ator, Del Dongo resolveu apresentá-lo ao estúdio de dublagem em que trabalhava. E Abelardinho começou por onde todo o dublador começa: fazendo o que se chama de “vozerio”, aquelas vozes anônimas de um grupo de personagens falando ao mesmo tempo.
A seu favor, Abelardinho tinha uma voz muito grave e bonita. E foi perdendo o forte sotaque nordestino por causa dos exercícios vocais que Del Dongo lhe passava.
Durante uma dessas aulas, aconteceu um episódio interessante. Estavam no apartamento de Del Dongo e Abelardinho pediu licença pra ir até o banheiro. Como o aluno demorasse algum tempo a voltar à lição, o professor resolveu verificar o que estava acontecendo. Empurrou a porta do banheiro e flagrou Abelardinho, muito concentrado, cheirando uma cueca samba-canção que ele, Del Dongo, tinha acabado de usar. “Nada do que é humano me choca”, pensou Del Dongo, lembrando-se de uma frase que Cacilda Becker dissera recentemente numa peça de Tennessee Williams. Por isso, fechou a porta do banheiro discretamente e fez que não tinha visto nada de extraordinário.
Uma nova série, que estava fazendo um grande sucesso nos Estados Unidos, ia ser lançada na Tevê Globo. O protagonista era um policial machão que dava porrada e falava grosso. Depois de alguns testes, a empresa dubladora escolheu Abelardinho para dublar o ator americano. Este trabalho fixo rendia um cachê razoável e, então, Abelardinho aproveitou a oportunidade pra largar o banco e se dedicar inteiramente à carreira artística.
Agora sua mãe, bem acabadinha, já estava completamente cega. Diante desse fato, Abelardinho decidiu dar uma alegria à velha, anunciando que iria estrelar uma novela da Globo. Sem enxergar as imagens, apenas ouvindo a voz do filho, a ilusão maternal foi perfeita. Durante as três temporados do seriado, a velhinha cega viveu em plena felicidade com o sucesso do filho global.
Quando o seriado foi suspenso, devido a uma greve de dubladores que se estendeu por meses, Abelardinho entrou em pânico. Mas, nisso, a velhinha morreu repentinamente. “Pelo menos, morreu feliz”, pensou Abelardinho.
No 200, correu o boato de que ele tinha estrangulado a mãe.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Emprego

Escrevi este esquete a pedido de uma atriz. Ela o recusou porque o considerou pesado demais, cruel, com um humor politicamente incorreto. Concordo com ela.

PATRÃO, TIPO EXECUTIVO, MUITO EDUCADO E FORMAL, SENTADO DIANTE DE SUA MESA, LIGA O INTERFONE.
PATRÃO: Dona Teresinha, faça o favor de mandar entrar as candidatas. Quantas são? (............) Mais de cinqüenta?! Meu Deus! Faça uma coisa melhor, dona Teresinha. Tem alguma gorda aí? Uma gorda bem gorda? (.................) Faça o seguinte: mande entrar a mais gorducha e dispense o resto. (...............) Isso mesmo. Obrigado.
ENTRA UMA MULHER GORDA, DE UNS TRINTA ANOS, CARREGANDO UM PORTFÓLIO.
MULHER: Com licença...
PATRÃO: Entre, senhorita... (ELA VAI SE SENTAR, MAS ELE INTERVÉM.) Por favor, fique de pé um instante. Eu gostaria de verificar cuidadosamente o seu visual.
MULHER: Tudo bem, doutor, mas não deixa de ser uma coisa estranha. Porque eu não vim me candidatar a um emprego de modelo. Se bem que o anúncio do jornal era meio misterioso e não especificasse o tipo de trabalho. Em todo o caso, espero que o senhor goste do meu estilo. Tá certo que eu to meio cheinha: exagerei nos doces nesse último fim de semana. Mas se eu fizer uma dietazinha, em uma semana fico magrinha-magrinha. Mas também não posso exagerar, se não vai dar a impressão de que sou anoréxica... e eu não quero que as pessoas fiquem me olhando com olhar de piedade, como se eu estivesse morrendo de inanição por não ter o que comer. Porque eu tenho o que comer e como. E como como!
PATRÃO: Percebe-se.
MULHER: (DEPOIS DE FAZER UM PIVÔ) Então? Gostou?
PATRÃO: Muito. Pra mim, tá perfeito.
MULHER: Que bom!
PATRÃO: Por favor, sente-se. (ELA SENTA, COLOCANDO SEU PORTFÓLIO SOBRE A MESA.) É o seu currículo?
MULHER: Meu portfólio, como dizem as modelos. Deixa eu lhe mostrar as minhas fotos. Olha só que material interessante! Essa aqui sou eu e os meus cachorros.
PATRÃO: Quanto cachorro! A senhorita mora num canil?
MULHER: Imagina, doutor! Sou eu trabalhando. Foi um dos meus empregos. Eu era passeadora de cachorro.
PATRÃO: Passeadora de cachorro?!
MULHER: Exatamente. Este aqui é o Bobby, o meu preferido. Veja só que gracinha! Vivia me lambendo.
PATRÃO: O quê?!
MULHER: Lambendo a minha perna! Não seja malicioso, doutor.
PATRÃO: Desculpe... E por que deixou o emprego? Foi despedida?
MULHER: Não, eu deixei porque quis. Olha esse cachorrão aqui, o Manfredo. O maldito Manfredo! Um dia ele me arrastou ladeira abaixo e eu saí rolando feito uma bola. Me estrumbiquei toda! Fui parar no hospital! Depois dessa, adeus cachorrada! (MOSTRA OUTRA PÁGINA.) Aqui sou eu comendo um Big Mac, quando trabalhei de atendente no Mac Donald’s.
PATRÃO: E saiu do emprego por quê?
MULHER: Devo confessar que fui mandada embora. Cometi alguns erros. Eu mandava ver! Não conseguia resistir àquelas porções de batata frita, àqueles milk shakes de chocolate, àquelas tortas de banana, hum, que delícia!, já to com água na boca... (VIRA OUTRA PÁGINA.) Este aqui foi o meu último emprego...
PATRÃO: (INTERROMPENDO-A) Tudo bem, senhorita, não precisa mostrar mais nada. O emprego é seu.
MULHER: Que maravilha! E qual vai ser exatamente a minha função?
PATRÃO: Não se preocupe, é fácil. Pra senhorita, é fácil.
MULHER: Claro! Pra mim, todas as funções de uma secretária são fáceis. Sei falar inglês, francês, italiano, espanhol... e até japonês! Qué vê só? “Akira Kurosawa, Toshiro Mifune, Tatsuia Nakadai.” Ah! E tô fazendo um cursinho rápido de chinês, porque, como o senhor sabe, os chineses vão dominar o mundo. E também sou especialista em taquigrafia, computação e Xerox.
PATRÃO: A senhorita não vai precisar de nada disso, relaxe. Mas, com todo esse preparo, como é que até hoje a senhorita não arranjou um emprego melhor, como secretária bilíngüe, sei lá?
MULHER: Vai me dizer que o senhor não sabe? Não se faça de inocente. Patrão só admite secretária tipo modelo: magra e burra. O que não é o meu caso, como o senhor pode verificar... Mas o senhor me mata de curiosidade! Afinal, o que é que eu vou fazer?
PATRÃO: A senhorita vai exercer a função de... digamos assim... a função de rolha de poço.
MULHER: Nossa! Nunca ouvi falar desse cargo. O que é isso?
PATRÃO: Eu já explico. Tudo quanto é pepino da empresa desaba em cima mim. O dia inteiro entra aqui na minha sala um bando de gente inconveniente. É cliente fazendo reclamação, funcionário pedindo aumento, minha ex-mulher cobrando pensão, marido corno querendo me dar porrada. E muita gente de teatro pedindo apoio cultural! A senhorita vai barrar esses chatos.
MULHER: De que jeito, doutor?
PATRÃO: Facinho ! A senhorita vai bancar a rolha de poço. Quando aqueles pentelhos quiserem forçar a entrada... sim, porque eles são ousados e não respeitam nem os seguranças... nesse caso, a senhorita se coloca bem ali no vão da porta. Fica ali paradinha. Não precisa dizer nem fazer nada. Sua presença... e somente ela... vai impedir a entrada dos energúmenos. Entendeu?
MULHER: Entendi, doutor, agora entendi.
PATRÃO: E então? Aceita o emprego?
MULHER: Aceito, doutor...
PATRÃO: Que ótimo!
MULHER: ... mas com uma condição. Antes o senhor deve me responder uma pergunta.
PATRÃO: Pois não, pergunte.
MULHER: A senhora sua mãe é gordinha, não é?
PATRÃO: É, sim. Como é que a senhorita sabe disso?
MULHER: É uma coisa natural: com uma certa idade, as mulheres costumam engordar. Problemas hormonais, com o senhor deve saber. Mas o que eu quero lhe sugerir é o seguinte: (LEVANTANDO-SE DA CADEIRA) Por que o senhor não pega a sua mãezinha querida e bota ela ali na porta pra servir de rolha de poço?! (E SAI DA SALA PISANDO DURO.)
PATRÃO: (CONSIGO MESMO) Que gordinha mais mal-agradecida! Ganha um emprego sem precisar fazer o teste do sofá... e ainda fica fazendo doce! (LIGA O INTERFONE.) Dona Teresinha, sobrou alguma gorda por aí? (...............) Sei, foram todas embora... Então faça o seguinte: descubra onde os “gordos anônimos” se reúnem, pegue a fulana mais gorducha, ofereça-lhe uma feijoada do “Bolinha” e me traga aqui. Como disse o Albert Camus, “depois de uma feijoada, a peste!” (E DESLIGA O INTERFONE, ENCERRANDO-SE O QUADRO.)

domingo, 16 de maio de 2010

LOUCO

“A diferença entre um louco e eu é que eu não sou louco.”
Salvador Dali


Eu (me) convenceria como louco
se tivesse a coragem de sair
num belo dia de sol
com um guarda-chuva aberto
todo roto.
Enquanto isso não faço,
mantenho o máximo recato:
escolho com cuidado
a cor do cinto
combinando com
a cor do sapato.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

ABEL E FANNY

Para meu amigo Wagner Vaz, ator carioca, vizinho e fã de Fada Santoro.

“Benvólio: Ai de mim! Que o amor, tão gentil na aparência, tenha que ser tão cruel e tirano na prova!”
“Romeu e Julieta”, Shakespeare.


Foi no Rio de Janeiro, nos anos sessenta.
Se Abel - que interpretava Romeu - já estava arrasado porque a temporada de “Romeu e Julieta” acabava naquele domingo, mais arrasado ficou ainda quando percebeu que Fanny – a sua Julieta - tinha ido embora do teatro sem se despedir dele. Mas, de certa forma, isso não o surpreendeu: já estava acostumado com o estranho comportamento da garota por quem estava apaixonado.
Abel e Fanny faziam parte do grupo teatral da “Sociedade Literária Israelita Brasileira Baruch Spinoza”. Além dos jovens judeus que eram sócios da entidade, o grupo de teatro admitia atores semiprofissionais não judeus – ou “góis”, como eram chamados. No elenco de uns vinte atores, pelo menos a metade não eram judeus – sendo que um, inclusive, era de origem árabe, o que demonstrava claramente a face liberal da “Sociedade Spinoza”. Mas nem tão liberal assim, como veremos.
A experiência teatral anterior de Abel se resumia em duas peças infantis, em que interpretara, pateticamente, um coelho numa e um príncipe na outra. Tenso e nervoso, na estréia do espetáculo em que tentava representar o príncipe encantando, soltou um sonoro pum na cena de amor com a princesa e ficou rubro de vergonha: a platéia infantil morreu de rir. Mas isso não o traumatizou. Como sua secreta ambição era a de se tornar um novo Adriano Reys , ele não desistiu do seu sonho.
Maior que sua ambição era a sua timidez: em estado de pânico , apresentou-se para teste com o diretor de “Romeu e Julieta” - um velho judeu refugiado de guerra que se vangloriava de ter sido assistente de direção em filmes de Ernst Lubitsch e Fritz Lang, mas que, segundo as más línguas, tinha sido apenas um simples açougueiro em sua terra natal.
“Abel? O assassino de Caim?”, perguntou o diretor. “Você é judeu?”
“Eu sou mineiro”, respondeu o rapaz. “Abel é apelido e nome artístico. Meu nome é Abelardo.”
“Ótimo!”, comentou o diretor. “Julieta judia e Romeu “gói” dá samba. Eu preferia um Romeu negro, mas não tem ator negro neste país, só o Grande Otelo. Nesse caso, vai você mesmo, meu filho.”
Lá no fundo do coração todo o jovem ator sonha em interpretar Romeu, e Abel não fugia à regra. Mas, agora que o sonho estava prestes a se realizar, baixou a insegurança e o medo de ser mandado embora logo no primeiro dia de ensaio.
Naquela noite ele não conseguiu dormir direito de tão nervoso. E no dia seguinte, ao meio-dia, quando devia ficar no lugar do pai na portaria do edifício enquanto o velho ia almoçar, trancou-se no banheiro vítima de uma diarréia monumental. Se soubesse a causa do transtorno intestinal do filho, o pai teria dado bronca: no seu entendimento “teatro era coisa de veado”, como sempre dizia.
Abel e Fanny tinham vinte anos de idade, e a atração física que um sentiu pelo outro foi imediata, situação favorecida pelo amor trágico que envolve os protagonistas da peça e pelo processo de ensaio proposto pelo diretor. Com o pretexto de que a relação entre Romeu e Julieta deveria ser aprofundada, o velho diretor mandava o resto do elenco sair da sala durante as cenas do casal, e determinava exercícios de improvisação e contato físico, um tipo de preparação do ator que ainda não tinha se tornado coisa comum em nosso teatro. Durante esses ensaios privados, Samuel – que liderava o grupo teatral – ficava espionando pelo buraco da fechadura e, certa vez, pego em flagrante por um colega judeu, confidenciou-lhe:
“Nosso diretor deve ser mesmo um vigarista. Fica provocando os dois pombinhos, botando fogo na fogueira. Vai ver, o tarado se excita vendo sacanagem alheia.”
“Parece que você também!”, ironizou o colega.
A verdade era que Samuel já andava desconfiado das esquisitices do diretor desde o dia em que o encontrara sentado num banco da praia de Copacabana. O velho falava em ídiche consigo mesmo e apontava a mão para o céu fazendo estranhos sinais. Quando Samuel lhe perguntou o que era aquilo, ele respondeu que estava tentando derrubar um avião da Panair com gestos mágicos.
Os ensaios – que duraram meses devido à inexperiência do elenco e à dificuldade do texto – aconteciam na sede da “Sociedade Spinoza”, um prédio escuro na Cinelândia, com salas cheias de livros empoeirados, escritos em línguas que Abel desconhecia. Numa das saletas, alguns rapazes judeus costumavam jogar xadrez, coisa que Abel nunca tinha visto antes. Às vezes, ele ficava ao lado observando aquele jogo bizarro, sem se atrever a jogá-lo mesmo quando convidado. Tinha medo de perder feio e de se sentir humilhado pela inteligência daqueles rapazes, todos cursando a universidade, enquanto ele se considerava um ignorante que nem conseguira acabar o ginásio.
Além dos exercícios diante do diretor, Abel e Fanny aproveitavam todo e qualquer momento em que estivessem sozinhos para se atracarem aos beijos e abraços, cheios de sofreguidão e desespero. No fundo da sala de ensaio, havia uma coluna atrás da qual se agarravam como dois animais no cio. Mas, na frente dos outros, comportavam-se como simples colegas de ofício. Nunca tinham discutido o assunto, esse ou qualquer outro: quase não se falavam. Mas parecia haver um acordo mútuo de que ninguém deveria saber que havia alguma coisa entre os dois. Ele, que nunca tivera uma namorada firme, agia dessa forma por timidez, desconfiado de que ela fazia o mesmo porque não quisesse que seus amigos judeus soubessem do seu envolvimento com um “gói” que, pior ainda, não tinha onde cair morto.
Por ser secreta, a paixão que Abel sentia por Fanny aumentava a cada ensaio. Essa emoção verdadeira fez com que ele descobrisse sua alma de ator, depois de sua ingênua experiência em peças infantis. Jogando-se de corpo e alma no seu personagem, ele sentia finalmente a alegria e o prazer de representar. Agora não tinha mais dúvida de que era a essa a profissão que iria seguir pelo resto de sua vida, entendendo o que a grande atriz Dulcina de Moraes quisera dizer quando dissera: “Representar em cima de um palco é melhor que trepar.”
Fanny era filha única de um velho casal de judeus ortodoxos. Aos dezessete anos, para se livrar da opressão familiar, ela conseguiu que o pai a mandasse para Israel, onde foi morar num kibutz. Menina rica, sentia-se feliz capinando no deserto, distante do tédio que tinha sido a sua vida no Brasil. Um ano depois, estava servindo ao exército como soldada e se exercitando com uma metralhadora, sob a ameaça constante de uma eventual guerra contra os árabes.Nas areias de uma praia de Haifa, numa noite de verão, fez amor pela primeira vez com um colega de farda. Logo ficou grávida e, como não quisesse se casar com o colega, deu uma de louca e foi enviada de volta ao Brasil. Sem que ninguém soubesse, se submeteu a um aborto. E meses depois, sem ter nada o que fazer, resolveu experimentar ser atriz em “Romeu e Julieta”. Os pais não gostaram muito, mas acabaram concordando com a inesperada idéia da filha, pois, afinal, tratava-se de um grupo de teatro judeu. Consideravam a filha meio desequilibrada e, quem sabe, talvez ela encontrasse ali na “Sociedade Spinoza” um bom rapaz judeu com quem pudesse se casar.
Às vésperas da estréia - com os ensaios já acontecendo num clube israelita situado nas Laranjeiras, onde o espetáculo iria ser inicialmente apresentado - Abel percebeu que o chofer particular que quase sempre conduzia Fanny não aguardava por ela na saída. Então ele a seguiu pela rua na direção do Largo do Machado, acreditando que não estava sendo notado. No entanto, ao parar um táxi, Fanny voltou-se para trás e convidou Abel a entrar com ela no carro. Logo estavam se beijando loucamente. Até que o motorista resmungou qualquer coisa e o casal foi obrigado a se controlar. Certo momento, para sua surpresa, Abel entendeu que Fanny estava propondo que passassem a noite num hotel. Ele já estava pedindo ao motorista que se dirigisse para o Catete, quando Fanny corrigiu:
“Não esta noite, mas uma outra noite!”
Ela não era boba. Estava em período fértil e só iria dormir com o Romeu às vésperas de ficar menstruada. Gato escaldado tem medo de água fria. Pílula anticoncepcional ela também não iria tomar porque podia dar câncer. Camisinha podia furar. Dali uma semana seria o momento ideal.
“Quando o nosso dia chegar, vamos tomar um trem na Central do Brasil e passar a noite em algum hotelzinho do Méier ou do Encantado”, decretou Fanny.
Abel achou meio absurda a proposta de pegaram trem na Central. Seria muito mais fácil se hospedarem em algum hotel do Catete. Mas Fanny expusera o plano com tanta determinação que Abel achou melhor não dizer nada: não quis correr o risco de perder o que já tinha ganho.
Nisso, o táxi já estava chegando na Avenida Atlântica e os dois se separaram: Fanny seguiu para o Leme, enquanto Abel foi andando nas nuvens pelo calçadão de Copacabana.
E assim foi que no domingo que se seguiu à estréia da peça, na cena final em que Julieta se suicida sobre o cadáver de Romeu, Fanny sussurrou para Abel: “É hoje.”
Ao chegarem à Central do Brasil, ela disse que queria ter uma conversa séria com ele e o puxou pela mão até a mesa de um botequim infecto. Depois de entornar uma caipirinha, ela explicou:
“Vou te contar uma história que ninguém sabe. Na verdade, eu não sou filha daquele casal de velhos. Ou melhor, sou filha adotada. Antes, eles tiveram duas filhas que morreram num campo de concentração. E depois não puderam ter mais filhos. Não sei direito, mas parece que ele foi capado pelos nazistas. Então eles resolveram adotar uma criança abandonada, que era eu. Tenho uma lembrança muito vaga de quando eu tinha três ou quatro anos. Junto com minha mãe eu ficava mendigando numa escadaria junto a uma estação de trem. Outro dia eu vi na televisão umas imagens da estação do Encantado, acho que é lá que a gente ficava. Me lembro da passarela sobre os trilhos, do barulho do trem, do povão andando pra lá e pra cá. Quero descer nas estações e ver se reconheço o lugar. Do meu nome eu não me lembro, mas minha mãe era chamada de Joana Cu.”
Naquela noite eles tomaram um trem quase vazio e ficaram abraçados, em silêncio, vendo passar as imagens de um Rio de Janeiro que não se vê em cartão-postal e que eles desconheciam. Saltaram no Encantado, mas Fanny não reconheceu o lugar onde fora criança. Já era mais de meia-noite e resolveram entrar num hotelzinho vagabundo perto da estação. Não conseguiram dormir. O desejo de um pelo outro sobrepujava tanto o sono quanto o sangue da menstruação, que empapou o lençol puído e o colchão furado.
Manhã cedo, prosseguiram a viagem na direção da Baixada Fluminense, mas à medida que o trem foi se aproximando da estação seguinte, que era Piedade, Fanny apertou com força a mão de Abel e o puxou pra fora do vagão. Em cima da passarela que atravessava os trilhos, ela parou e se debruçou na amurada: reconheceu, lá embaixo, o bar onde comia pão com manteiga e, mais adiante, a marquise onde dormia. Uma multidão caminhava apressada pela passarela de um lado para o outro e, de repente, Fanny teve a impressão de que iria dar de cara com a mãe. Depois de tanto tempo, ela ainda estaria viva? Ou teria morrido antes dela ter sido adotada?
Essa foi a única vez que fizeram amor. Mas alguns meses depois, numa excursão que fizeram a Belo Horizonte para uma única apresentação do espetáculo, sentaram-se juntos no ônibus. Durante a noite, enquanto todos dormiam, eles ficaram se tocando com a mesma paixão de sempre. E Fanny acabou limpando nos cabelos as mãos cheias do amor de Abel.
Agora, no último dia da apresentação da peça, no Teatro Maison de France, Fanny tinha ido embora sem ao menos se despedir. Abel tomou um ônibus para Copacabana e se dirigiu ao “Max”, um barzinho estreito e comprido situado na praia, debaixo da Galeria Alaska, onde algumas vezes o pessoal do grupo costumava se reunir. Talvez Fanny tivesse ido para lá. Dito e feito. Lá estava ela, numa mesa de fundo, junto com um fotógrafo americano. Em outras ocasiões - o grupo reunido em duas ou três mesas - o tal americano ficara ciscando ao redor de Fanny, conversando com ela em inglês, despertando assim um ciúme feroz em Abel. O diabo da timidez impediu que Abel entrasse no bar e se aproximasse da mesa onde o casal conversava animadamente. Parado na calçada como um idiota, diante do bar superlotado, ele tentou chamar a atenção da moça. Será que ela não via, ou fazia que não via, os seus gestos desesperados? Depois de um tempo, saiu de dentro do bar um sujeito grandalhão, meio alcoolizado, que se dirigiu a Abel de maneira agressiva:
“O que tá havendo, camarada? Tá vendendo droga?” Em seguida, o sujeito exibiu uma carteirinha identificando-se como detetive da policia e concluiu: “Vamos lá na Delegacia! Você vai ter que se explicar!”
Cada vez mais assustado, Abel tentou se justificar, mas o policial agarrou-o pelo braço e –suprema humilhação! - o conduziu através da Galeria Alaska até a 13ª Delegacia, ali perto, do outro lado da Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
Diante de um grande tabuleiro de xadrez, o delegado de plantão – que logo se tornaria um famoso escritor - estava entretido em jogar uma partida consigo mesmo. O detetive aproximou-se trazendo Abel e foi logo dizendo sem a menor cerimônia:
“Doutor, peguei este marginal em atitude suspeita, vendendo droga lá na praia.”
O delegado continuou olhando as peças de xadrez durante algum tempo. Depois encarou o detetive com desagrado e disse:
“Miguelão, você tá bêbado.” Finalmente olhou para o aterrorizado Abel, perguntando:
“E você, rapaz, sabe jogar xadrez?”
Abel mal conseguiu balançar a cabeça sinalizando que sim.
“Qual é o lance que você daria se estivesse jogando com as pretas?”, perguntou o delegado.
Abel examinou o jogo, e depois apanhou um cavalo preto, pulou duas casas à esquerda e uma em frente, abatendo um peão branco. Então o delegado decretou:
“Vá pra casa curar o seu porre, Miguelão. E você também pode ir embora, rapaz. Marginal não sabe jogar xadrez.”
Abel voltou depressa ao “Max”, mas Fanny não estava mais lá. Depois desse dia, ela desapareceu, e os dois só foram se encontrar mais uma vez uns trinta anos mais tarde.

Abel estava fazendo um filme em São Paulo. Determinada sequência deveria ser filmada nos jardins de uma elegante mansão, onde aconteceria uma festa noturna com dezenas de figurantes. A equipe de produção acabou conseguindo uma propriedade no Morumbi, com a condição de que a filmagem durasse só uma noite, que se usasse apenas o jardim e que ninguém entrasse na casa.
Lá pela meia-noite, depois de duas ou três cenas rodadas, entrou pela alameda principal um carrão importado, de onde saiu um casal. Abel e o diretor do filme, que ensaiavam a próxima cena, foram interrompidos pela aproximação do casal que se apresentou como proprietários da mansão. Abel logo reconheceu Fanny, agora uma cinquentona elegante e ainda bela. Como sempre, comportaram-se como dois estranhos. O marido dela, um italianão simpático, fez questão de dizer que estava feliz por colaborar com o cinema nacional. E Fanny comentou que, muitos anos atrás, tinha tido uma experiência teatral fazendo o papel de Julieta.
“Agora, se retornasse ao teatro, gostaria de interpretar a maluca Lady Macbeth”, concluiu sorrindo.
Depois o casal se retirou, e Abel pensou consigo mesmo que, mesmo não sendo tão velho, talvez já estivesse em condições de encarnar o amargo Rei Lear.