segunda-feira, 26 de abril de 2010

ABEL E FANNY

Para meu amigo Wagner Vaz, ator carioca, vizinho e fã de Fada Santoro.

“Benvólio: Ai de mim! Que o amor, tão gentil na aparência, tenha que ser tão cruel e tirano na prova!”
“Romeu e Julieta”, Shakespeare.


Foi no Rio de Janeiro, nos anos sessenta.
Se Abel - que interpretava Romeu - já estava arrasado porque a temporada de “Romeu e Julieta” acabava naquele domingo, mais arrasado ficou ainda quando percebeu que Fanny – a sua Julieta - tinha ido embora do teatro sem se despedir dele. Mas, de certa forma, isso não o surpreendeu: já estava acostumado com o estranho comportamento da garota por quem estava apaixonado.
Abel e Fanny faziam parte do grupo teatral da “Sociedade Literária Israelita Brasileira Baruch Spinoza”. Além dos jovens judeus que eram sócios da entidade, o grupo de teatro admitia atores semiprofissionais não judeus – ou “góis”, como eram chamados. No elenco de uns vinte atores, pelo menos a metade não eram judeus – sendo que um, inclusive, era de origem árabe, o que demonstrava claramente a face liberal da “Sociedade Spinoza”. Mas nem tão liberal assim, como veremos.
A experiência teatral anterior de Abel se resumia em duas peças infantis, em que interpretara, pateticamente, um coelho numa e um príncipe na outra. Tenso e nervoso, na estréia do espetáculo em que tentava representar o príncipe encantando, soltou um sonoro pum na cena de amor com a princesa e ficou rubro de vergonha: a platéia infantil morreu de rir. Mas isso não o traumatizou. Como sua secreta ambição era a de se tornar um novo Adriano Reys , ele não desistiu do seu sonho.
Maior que sua ambição era a sua timidez: em estado de pânico , apresentou-se para teste com o diretor de “Romeu e Julieta” - um velho judeu refugiado de guerra que se vangloriava de ter sido assistente de direção em filmes de Ernst Lubitsch e Fritz Lang, mas que, segundo as más línguas, tinha sido apenas um simples açougueiro em sua terra natal.
“Abel? O assassino de Caim?”, perguntou o diretor. “Você é judeu?”
“Eu sou mineiro”, respondeu o rapaz. “Abel é apelido e nome artístico. Meu nome é Abelardo.”
“Ótimo!”, comentou o diretor. “Julieta judia e Romeu “gói” dá samba. Eu preferia um Romeu negro, mas não tem ator negro neste país, só o Grande Otelo. Nesse caso, vai você mesmo, meu filho.”
Lá no fundo do coração todo o jovem ator sonha em interpretar Romeu, e Abel não fugia à regra. Mas, agora que o sonho estava prestes a se realizar, baixou a insegurança e o medo de ser mandado embora logo no primeiro dia de ensaio.
Naquela noite ele não conseguiu dormir direito de tão nervoso. E no dia seguinte, ao meio-dia, quando devia ficar no lugar do pai na portaria do edifício enquanto o velho ia almoçar, trancou-se no banheiro vítima de uma diarréia monumental. Se soubesse a causa do transtorno intestinal do filho, o pai teria dado bronca: no seu entendimento “teatro era coisa de veado”, como sempre dizia.
Abel e Fanny tinham vinte anos de idade, e a atração física que um sentiu pelo outro foi imediata, situação favorecida pelo amor trágico que envolve os protagonistas da peça e pelo processo de ensaio proposto pelo diretor. Com o pretexto de que a relação entre Romeu e Julieta deveria ser aprofundada, o velho diretor mandava o resto do elenco sair da sala durante as cenas do casal, e determinava exercícios de improvisação e contato físico, um tipo de preparação do ator que ainda não tinha se tornado coisa comum em nosso teatro. Durante esses ensaios privados, Samuel – que liderava o grupo teatral – ficava espionando pelo buraco da fechadura e, certa vez, pego em flagrante por um colega judeu, confidenciou-lhe:
“Nosso diretor deve ser mesmo um vigarista. Fica provocando os dois pombinhos, botando fogo na fogueira. Vai ver, o tarado se excita vendo sacanagem alheia.”
“Parece que você também!”, ironizou o colega.
A verdade era que Samuel já andava desconfiado das esquisitices do diretor desde o dia em que o encontrara sentado num banco da praia de Copacabana. O velho falava em ídiche consigo mesmo e apontava a mão para o céu fazendo estranhos sinais. Quando Samuel lhe perguntou o que era aquilo, ele respondeu que estava tentando derrubar um avião da Panair com gestos mágicos.
Os ensaios – que duraram meses devido à inexperiência do elenco e à dificuldade do texto – aconteciam na sede da “Sociedade Spinoza”, um prédio escuro na Cinelândia, com salas cheias de livros empoeirados, escritos em línguas que Abel desconhecia. Numa das saletas, alguns rapazes judeus costumavam jogar xadrez, coisa que Abel nunca tinha visto antes. Às vezes, ele ficava ao lado observando aquele jogo bizarro, sem se atrever a jogá-lo mesmo quando convidado. Tinha medo de perder feio e de se sentir humilhado pela inteligência daqueles rapazes, todos cursando a universidade, enquanto ele se considerava um ignorante que nem conseguira acabar o ginásio.
Além dos exercícios diante do diretor, Abel e Fanny aproveitavam todo e qualquer momento em que estivessem sozinhos para se atracarem aos beijos e abraços, cheios de sofreguidão e desespero. No fundo da sala de ensaio, havia uma coluna atrás da qual se agarravam como dois animais no cio. Mas, na frente dos outros, comportavam-se como simples colegas de ofício. Nunca tinham discutido o assunto, esse ou qualquer outro: quase não se falavam. Mas parecia haver um acordo mútuo de que ninguém deveria saber que havia alguma coisa entre os dois. Ele, que nunca tivera uma namorada firme, agia dessa forma por timidez, desconfiado de que ela fazia o mesmo porque não quisesse que seus amigos judeus soubessem do seu envolvimento com um “gói” que, pior ainda, não tinha onde cair morto.
Por ser secreta, a paixão que Abel sentia por Fanny aumentava a cada ensaio. Essa emoção verdadeira fez com que ele descobrisse sua alma de ator, depois de sua ingênua experiência em peças infantis. Jogando-se de corpo e alma no seu personagem, ele sentia finalmente a alegria e o prazer de representar. Agora não tinha mais dúvida de que era a essa a profissão que iria seguir pelo resto de sua vida, entendendo o que a grande atriz Dulcina de Moraes quisera dizer quando dissera: “Representar em cima de um palco é melhor que trepar.”
Fanny era filha única de um velho casal de judeus ortodoxos. Aos dezessete anos, para se livrar da opressão familiar, ela conseguiu que o pai a mandasse para Israel, onde foi morar num kibutz. Menina rica, sentia-se feliz capinando no deserto, distante do tédio que tinha sido a sua vida no Brasil. Um ano depois, estava servindo ao exército como soldada e se exercitando com uma metralhadora, sob a ameaça constante de uma eventual guerra contra os árabes.Nas areias de uma praia de Haifa, numa noite de verão, fez amor pela primeira vez com um colega de farda. Logo ficou grávida e, como não quisesse se casar com o colega, deu uma de louca e foi enviada de volta ao Brasil. Sem que ninguém soubesse, se submeteu a um aborto. E meses depois, sem ter nada o que fazer, resolveu experimentar ser atriz em “Romeu e Julieta”. Os pais não gostaram muito, mas acabaram concordando com a inesperada idéia da filha, pois, afinal, tratava-se de um grupo de teatro judeu. Consideravam a filha meio desequilibrada e, quem sabe, talvez ela encontrasse ali na “Sociedade Spinoza” um bom rapaz judeu com quem pudesse se casar.
Às vésperas da estréia - com os ensaios já acontecendo num clube israelita situado nas Laranjeiras, onde o espetáculo iria ser inicialmente apresentado - Abel percebeu que o chofer particular que quase sempre conduzia Fanny não aguardava por ela na saída. Então ele a seguiu pela rua na direção do Largo do Machado, acreditando que não estava sendo notado. No entanto, ao parar um táxi, Fanny voltou-se para trás e convidou Abel a entrar com ela no carro. Logo estavam se beijando loucamente. Até que o motorista resmungou qualquer coisa e o casal foi obrigado a se controlar. Certo momento, para sua surpresa, Abel entendeu que Fanny estava propondo que passassem a noite num hotel. Ele já estava pedindo ao motorista que se dirigisse para o Catete, quando Fanny corrigiu:
“Não esta noite, mas uma outra noite!”
Ela não era boba. Estava em período fértil e só iria dormir com o Romeu às vésperas de ficar menstruada. Gato escaldado tem medo de água fria. Pílula anticoncepcional ela também não iria tomar porque podia dar câncer. Camisinha podia furar. Dali uma semana seria o momento ideal.
“Quando o nosso dia chegar, vamos tomar um trem na Central do Brasil e passar a noite em algum hotelzinho do Méier ou do Encantado”, decretou Fanny.
Abel achou meio absurda a proposta de pegaram trem na Central. Seria muito mais fácil se hospedarem em algum hotel do Catete. Mas Fanny expusera o plano com tanta determinação que Abel achou melhor não dizer nada: não quis correr o risco de perder o que já tinha ganho.
Nisso, o táxi já estava chegando na Avenida Atlântica e os dois se separaram: Fanny seguiu para o Leme, enquanto Abel foi andando nas nuvens pelo calçadão de Copacabana.
E assim foi que no domingo que se seguiu à estréia da peça, na cena final em que Julieta se suicida sobre o cadáver de Romeu, Fanny sussurrou para Abel: “É hoje.”
Ao chegarem à Central do Brasil, ela disse que queria ter uma conversa séria com ele e o puxou pela mão até a mesa de um botequim infecto. Depois de entornar uma caipirinha, ela explicou:
“Vou te contar uma história que ninguém sabe. Na verdade, eu não sou filha daquele casal de velhos. Ou melhor, sou filha adotada. Antes, eles tiveram duas filhas que morreram num campo de concentração. E depois não puderam ter mais filhos. Não sei direito, mas parece que ele foi capado pelos nazistas. Então eles resolveram adotar uma criança abandonada, que era eu. Tenho uma lembrança muito vaga de quando eu tinha três ou quatro anos. Junto com minha mãe eu ficava mendigando numa escadaria junto a uma estação de trem. Outro dia eu vi na televisão umas imagens da estação do Encantado, acho que é lá que a gente ficava. Me lembro da passarela sobre os trilhos, do barulho do trem, do povão andando pra lá e pra cá. Quero descer nas estações e ver se reconheço o lugar. Do meu nome eu não me lembro, mas minha mãe era chamada de Joana Cu.”
Naquela noite eles tomaram um trem quase vazio e ficaram abraçados, em silêncio, vendo passar as imagens de um Rio de Janeiro que não se vê em cartão-postal e que eles desconheciam. Saltaram no Encantado, mas Fanny não reconheceu o lugar onde fora criança. Já era mais de meia-noite e resolveram entrar num hotelzinho vagabundo perto da estação. Não conseguiram dormir. O desejo de um pelo outro sobrepujava tanto o sono quanto o sangue da menstruação, que empapou o lençol puído e o colchão furado.
Manhã cedo, prosseguiram a viagem na direção da Baixada Fluminense, mas à medida que o trem foi se aproximando da estação seguinte, que era Piedade, Fanny apertou com força a mão de Abel e o puxou pra fora do vagão. Em cima da passarela que atravessava os trilhos, ela parou e se debruçou na amurada: reconheceu, lá embaixo, o bar onde comia pão com manteiga e, mais adiante, a marquise onde dormia. Uma multidão caminhava apressada pela passarela de um lado para o outro e, de repente, Fanny teve a impressão de que iria dar de cara com a mãe. Depois de tanto tempo, ela ainda estaria viva? Ou teria morrido antes dela ter sido adotada?
Essa foi a única vez que fizeram amor. Mas alguns meses depois, numa excursão que fizeram a Belo Horizonte para uma única apresentação do espetáculo, sentaram-se juntos no ônibus. Durante a noite, enquanto todos dormiam, eles ficaram se tocando com a mesma paixão de sempre. E Fanny acabou limpando nos cabelos as mãos cheias do amor de Abel.
Agora, no último dia da apresentação da peça, no Teatro Maison de France, Fanny tinha ido embora sem ao menos se despedir. Abel tomou um ônibus para Copacabana e se dirigiu ao “Max”, um barzinho estreito e comprido situado na praia, debaixo da Galeria Alaska, onde algumas vezes o pessoal do grupo costumava se reunir. Talvez Fanny tivesse ido para lá. Dito e feito. Lá estava ela, numa mesa de fundo, junto com um fotógrafo americano. Em outras ocasiões - o grupo reunido em duas ou três mesas - o tal americano ficara ciscando ao redor de Fanny, conversando com ela em inglês, despertando assim um ciúme feroz em Abel. O diabo da timidez impediu que Abel entrasse no bar e se aproximasse da mesa onde o casal conversava animadamente. Parado na calçada como um idiota, diante do bar superlotado, ele tentou chamar a atenção da moça. Será que ela não via, ou fazia que não via, os seus gestos desesperados? Depois de um tempo, saiu de dentro do bar um sujeito grandalhão, meio alcoolizado, que se dirigiu a Abel de maneira agressiva:
“O que tá havendo, camarada? Tá vendendo droga?” Em seguida, o sujeito exibiu uma carteirinha identificando-se como detetive da policia e concluiu: “Vamos lá na Delegacia! Você vai ter que se explicar!”
Cada vez mais assustado, Abel tentou se justificar, mas o policial agarrou-o pelo braço e –suprema humilhação! - o conduziu através da Galeria Alaska até a 13ª Delegacia, ali perto, do outro lado da Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
Diante de um grande tabuleiro de xadrez, o delegado de plantão – que logo se tornaria um famoso escritor - estava entretido em jogar uma partida consigo mesmo. O detetive aproximou-se trazendo Abel e foi logo dizendo sem a menor cerimônia:
“Doutor, peguei este marginal em atitude suspeita, vendendo droga lá na praia.”
O delegado continuou olhando as peças de xadrez durante algum tempo. Depois encarou o detetive com desagrado e disse:
“Miguelão, você tá bêbado.” Finalmente olhou para o aterrorizado Abel, perguntando:
“E você, rapaz, sabe jogar xadrez?”
Abel mal conseguiu balançar a cabeça sinalizando que sim.
“Qual é o lance que você daria se estivesse jogando com as pretas?”, perguntou o delegado.
Abel examinou o jogo, e depois apanhou um cavalo preto, pulou duas casas à esquerda e uma em frente, abatendo um peão branco. Então o delegado decretou:
“Vá pra casa curar o seu porre, Miguelão. E você também pode ir embora, rapaz. Marginal não sabe jogar xadrez.”
Abel voltou depressa ao “Max”, mas Fanny não estava mais lá. Depois desse dia, ela desapareceu, e os dois só foram se encontrar mais uma vez uns trinta anos mais tarde.

Abel estava fazendo um filme em São Paulo. Determinada sequência deveria ser filmada nos jardins de uma elegante mansão, onde aconteceria uma festa noturna com dezenas de figurantes. A equipe de produção acabou conseguindo uma propriedade no Morumbi, com a condição de que a filmagem durasse só uma noite, que se usasse apenas o jardim e que ninguém entrasse na casa.
Lá pela meia-noite, depois de duas ou três cenas rodadas, entrou pela alameda principal um carrão importado, de onde saiu um casal. Abel e o diretor do filme, que ensaiavam a próxima cena, foram interrompidos pela aproximação do casal que se apresentou como proprietários da mansão. Abel logo reconheceu Fanny, agora uma cinquentona elegante e ainda bela. Como sempre, comportaram-se como dois estranhos. O marido dela, um italianão simpático, fez questão de dizer que estava feliz por colaborar com o cinema nacional. E Fanny comentou que, muitos anos atrás, tinha tido uma experiência teatral fazendo o papel de Julieta.
“Agora, se retornasse ao teatro, gostaria de interpretar a maluca Lady Macbeth”, concluiu sorrindo.
Depois o casal se retirou, e Abel pensou consigo mesmo que, mesmo não sendo tão velho, talvez já estivesse em condições de encarnar o amargo Rei Lear.

Um comentário:

  1. Ah, Ênio! Não demore tanto pra me emocionar!
    Espero suas histórias como um bebê esfomeado espera o seio materno.

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