domingo, 22 de agosto de 2010

O FIGURANTE

“Desejar a imortalidade é desejar a eterna perpetuação de um grande erro.”
Schopenhauer


No dia anterior, a produção do filme tinha me avisado que, finalmente, iríamos rodar a sequência do cemitério, que ainda faltava para a conclusão da filmagem. A dificuldade tinha sido conseguir autorização oficial de algum cemitério da cidade pra que um bando de atores, técnicos e figurantes perturbassem o sono eterno dos que “já fizeram a passagem”, como diz um amigo meu. O cemitério seria em Perus, na Grande São Paulo.
Outro problema a ser solucionado tinha sido a questão do tempo. O diretor do filme queria um enterro debaixo de chuva, pois sabia que toda a cena de enterro que se preze tem que ter chuva e guarda-chuva. Como o serviço de meteorologia estava prevendo um dia de sol, a produção fez um grande esforço e conseguiu a promessa do corpo de bombeiros de Perus de enviar uma guarnição para produzir uma chuva artificial.
Portanto, aí pelas oito horas da manhã seguinte, uma Kombi entrou pela rua principal do cemitério trazendo a mim e mais meia dúzia de atores que participariam da filmagem. Fomos descarregados junto a um jazigo de mármore cuja imponência contrastava com a humildade dos demais túmulos, alguns apenas cobertos de terra. Toda a sequência deveria ser rodada ao redor desse túmulo majestoso guarnecido por um enorme anjo de asas abertas.
Perto dali, uns trinta figurantes já nos aguardavam, vestindo os seus melhores trajes, já que a produção paupérrima não lhes fornecia o figurino. E o enterro tinha de ser chique: o falecido era um velho industrial riquíssimo que deixava uma grande fortuna que iria ser disputada pelos herdeiros. Meu personagem era o de um safardana casado com uma filha do morto.
Nesse primeiro momento, olhamos aquela infinidade de túmulos com enorme respeito, com aquele ar compungido que sempre temos diante da morte. Em situações como essa, somos praticamente obrigados a fazer uma reflexão sobre a nossa curta existência e o nosso fim. Percebi isso ao observar o comportamento da velha atriz que interpretava a viúva do industrial: ela se benzeu e murmurou uma rápida oração. Devia estar pensando em sua própria morte, o que de fato ocorreu alguns meses depois, antes mesmo do filme entrar em exibição. Ela tinha sido uma grande estrela no início da Tevê Tupi e agora, melancolicamente, estava encerrando sua carreira como coadjuvante numa pornochanchada da Boca do Lixo.
Daí a pouco, o caminhão de bombeiros chegou e apenas ficou por ali de sobreaviso, pois o tempo tinha mudado, começava garoar. Os cinco ou seis bombeiros ficaram sentados sobre o caminhão observando com curiosidade a atividade da equipe de filmagem. O tenente de meia idade que comandava a guarnição aproximou-se da velha atriz e pediu um autógrafo: “Pra minha mãe, que é sua fã”, explicou ele.
Pouco depois começamos a ensaiar a primeira tomada. A laje que cobria a cova tinha sido retirada, para que o caixão baixasse sob as nossas vistas. Nós, atores, fomos colocados diante da câmera, o caixão em primeiro plano, enquanto que a figuração foi convocada para se posicionar às nossas costas. Quando o grupo de figurantes se aproximou, o diretor do filme – um sujeito de maus bofes e extremamente ferino – avaliou a indigência do que tinha para realizar sua grande obra, e comentou: “Mas olha só os amigos que o finado tinha!”
Mas um determinado figurante chamava a atenção. Magro e alto, bem vestido num terno elegante, foi colocado pelo assistente de direção justamente atrás de mim e da bela atriz que interpretava minha mulher. Na hora de rodar a cena, olhei para trás e percebi que ele sabia se posicionar muito bem ali, como um profissional, um autêntico “papagaio de pirata”. O que estaria fazendo ali, no meio daquela bugrada, um sujeito tão fino, com pinta de executivo bem sucedido?
Câmera rodando, no meio da cena, “minha mulher” deu um grito, interrompendo a filmagem. “Um filho da puta passou a mão na minha bunda!”, disse ela.
Fulo da vida, o diretor olhou para o nosso figurante e vociferou: “Mais respeito, cara! É por isso que o cinema nacional não vai pra frente... Tô de olho em você! Como é o seu nome?”
“Robério de Souza, um seu criado”, respondeu o sujeito com a cara mais inocente deste mundo.
“Só te mantenho no filme porque você é o único desses figurantes de merda que tem panca de rico! Se não, te mandava pra puta que o pariu!”, explodiu o diretor.
“Obrigado por não me despedir, senhor”, agradeceu o figurante fazendo uma elegante reverência. “Muito obrigado por me deixar realizar o sonho da minha vida, que é ser ator de cinema que nem o Rodolfo Valentino.”
Surpreendido por uma resposta tão gentil e sem saber quem era Rodolfo Valentino – talvez algum jovem galã da Tevê Globo? – o diretor se desarmou e encerrou o assunto: “Então bola pra frente! Vamo rodá!”
A partir daí, o trabalhou transcorreu normalmente. As pessoas foram se descontraindo e até esquecendo de que estavam num cemitério. Passou o cortejo de um enterro com acompanhantes chorando e o pessoal do filme não tomou conhecimento: continuaram falando alto e às gargalhadas, como se estivessem num botequim. A velha atriz contava para a maquiadora um episódio interessante que acontecera com ela na noite em que a Tevê Tupi foi ao ar pela primeira vez: o manda-chuva da emissora tinha passado a mão na bunda dela, exatamente como acabou de acontecer. De repente, um ator que deveria participar da próxima tomada desapareceu; o assistente de direção saiu a sua procura e foi encontrá-lo atrás de um túmulo em intimidades com um bombeiro. Na hora do almoço, comemos nossas “quentinhas” sentados sobre os túmulos, tão à vontade como se estivéssemos no restaurante Gigetto. Que falta de respeito!
Certo momento, vi o tal Robério de Souza se aproximar da “minha mulher” e conversar com ela. Logo depois ela me explicou: “O sujeito veio me pedir desculpas. Disse que não conseguiu resistir porque minha bunda é muito bonita. Olha só que cara de pau!”
No final da tarde, tínhamos acabado de rodar o filme. Antes de me dirigir a Kombi, que já manobrava para nos trazer de volta a São Paulo, me bateu a curiosidade de saber quem era o ocupante do túmulo que nos servira de cenário. Fiquei pasmo! O mármore estampava uma pequena foto esmaltada do nosso figurante, além do nome Robério de Souza, datas de nascimento e morte, e as palavras de praxe, “descanse em paz” etc.
Não gosto e nem tenho o hábito de me ver na tela, mas fiz questão de assistir o filme quando ele foi exibido alguns meses mais tarde. Robério de Souza não aparece na sequência do cemitério como meu “papagaio de pirata”. Sumiu.

Um comentário:

  1. Ah! Ah! Ah! Experiências "extra-vida", Ênio!?
    Falam muito sobre os mistérios da vida, mal sabem os da morte. Imagine então os do cinema!!!
    Muito bão, véio! Um beijão e... de novo, obrigado.

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