quarta-feira, 28 de julho de 2010

O DUBLADOR

“Se um cego guiar outro cego, os dois cairão num buraco.”
Evangelho segundo s. Mateus, cap.5, v.14


Era só Abelardinho e a mãe neste mundo, morando no apartamento quarto-sala conjugado do edifício 200 da Barata Ribeiro, o mais famoso “balança” do Rio de Janeiro no final da década de 60.
Primeiro, ele viera sozinho do sertão cearense. Depois de três anos de luta pela sobrevivência, trouxera a mãe, já quase cega naquela époc a, o sol inclemente da seca lhe queimara as retinas.
Lá na cidadezinha do sertão, Abelardinho tinha visto alguns filmes da Atlântida e ficara fã de José Lewgoy. Achava o máximo a voz e o bigode do famoso vilão do cinema nacional. Anselmo Duarte e Cyll Farney não lhe diziam nada, muito menos Eliana ou Fada Santoro. Daí nasceu sua vontade de se tornar ator de cinema. Sendo assim, “pegou um ita no norte e veio pro Rio morar”, seguindo o exemplo de Dorival Caymi.
Agora trabalhava como atendente no Banco Nacional em Copacabana, perto de casa. Nas horas vagas corria atrás da carreira artística, no cinema, no teatro e na televisão. Mas não conseguia penetrar naquele universo maravilhoso, talvez por causa da cara feia e do corpo desajeitado, como ele mesmo acreditava. Na verdade, era um sujeito despreparado, com uma visão ingênua do que seria a profissão de ator.
Acontece que no 200 também morava um artista famoso – famoso no prédio, pelo menos -, Eduardo Del Dongo, que atuava nos teleteatros da Tevê Tupi, além de ser dublador de filmes estrangeiros. Um dia Abelardinho cruzou com ele no elevador do prédio e logo se enturmou. Penalizado com a situação do vizinho aspirante a ator, Del Dongo resolveu apresentá-lo ao estúdio de dublagem em que trabalhava. E Abelardinho começou por onde todo o dublador começa: fazendo o que se chama de “vozerio”, aquelas vozes anônimas de um grupo de personagens falando ao mesmo tempo.
A seu favor, Abelardinho tinha uma voz muito grave e bonita. E foi perdendo o forte sotaque nordestino por causa dos exercícios vocais que Del Dongo lhe passava.
Durante uma dessas aulas, aconteceu um episódio interessante. Estavam no apartamento de Del Dongo e Abelardinho pediu licença pra ir até o banheiro. Como o aluno demorasse algum tempo a voltar à lição, o professor resolveu verificar o que estava acontecendo. Empurrou a porta do banheiro e flagrou Abelardinho, muito concentrado, cheirando uma cueca samba-canção que ele, Del Dongo, tinha acabado de usar. “Nada do que é humano me choca”, pensou Del Dongo, lembrando-se de uma frase que Cacilda Becker dissera recentemente numa peça de Tennessee Williams. Por isso, fechou a porta do banheiro discretamente e fez que não tinha visto nada de extraordinário.
Uma nova série, que estava fazendo um grande sucesso nos Estados Unidos, ia ser lançada na Tevê Globo. O protagonista era um policial machão que dava porrada e falava grosso. Depois de alguns testes, a empresa dubladora escolheu Abelardinho para dublar o ator americano. Este trabalho fixo rendia um cachê razoável e, então, Abelardinho aproveitou a oportunidade pra largar o banco e se dedicar inteiramente à carreira artística.
Agora sua mãe, bem acabadinha, já estava completamente cega. Diante desse fato, Abelardinho decidiu dar uma alegria à velha, anunciando que iria estrelar uma novela da Globo. Sem enxergar as imagens, apenas ouvindo a voz do filho, a ilusão maternal foi perfeita. Durante as três temporados do seriado, a velhinha cega viveu em plena felicidade com o sucesso do filho global.
Quando o seriado foi suspenso, devido a uma greve de dubladores que se estendeu por meses, Abelardinho entrou em pânico. Mas, nisso, a velhinha morreu repentinamente. “Pelo menos, morreu feliz”, pensou Abelardinho.
No 200, correu o boato de que ele tinha estrangulado a mãe.

Um comentário:

  1. Que tal um "livrão", Enio? Daqueles bem grossos e grandes pra gente não ficar com tanta saudade dos seus contos, hein?
    Um beijão

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