quinta-feira, 23 de julho de 2009

CONTO(2)

VISITANTE

Não tenho a mínima idéia de quem é esse homem. Sei apenas que é um perfeito cavalheiro, sempre elegante com seu terno e gravata, os sapatos pretos muito bem engraxados. Percebo este detalhe porque, ao sentar-se na poltrona, ele cruza as pernas e mantém suspenso no ar o pé direito como se fosse um belo pássaro negro e reluzente.
Não se trata de uma invasão, porque ele age de maneira muito educada. Mas certas noites, nas raras vezes em que a família está toda reunida, depois do jantar e da novela, ele entra pela porta do nosso apartamento, caminha pelo corredor, entra na sala, senta-se sempre no mesmo lugar e fica vendo televisão. Não pede licença, não dá boa-noite, não diz uma palavra. Mas, apesar disso, sua presença me traz uma espécie de tranquilidade, como se fosse ele, e não eu, o dono da casa, o responsável por alguma coisa que não sei bem o que é. Ele nada diz e nada lhe é perguntado. Tanto nós quanto ele agimos com a maior naturalidade nessa hora de perfeita convivência.
Trata-se de um homem sério, de mais ou menos uns sessenta anos. Pelo modo como se veste e se comporta, deve ser um burocrata bem sucedido, um diretor de banco, um alto executivo, um chefe de repartição, que sei eu? Às vezes, quando a noite é mais quente, ele toma a liberdade de afrouxar a gravata e tirar o paletó, revelando assim um discreto par de suspensórios, daqueles de antigamente, quando eles combinavam com o cinto.
O mais estranho é que ele não me lembra ninguém que eu tenha visto ou conhecido em toda a minha vida, nem pai, nem parente, nem vizinho, nem artista de cinema ou televisão. Mas, apesar disso, é como se eu o conhecesse desde que nasci.
Ele é apenas uma testemunha silenciosa do que se desenrola ali na sala, quando a família se reúne e contamos uns aos outros o que nos aconteceu naquele dia, o que é quase sempre a mesma coisa. Quando surge um fato surpreendente, ele não aparenta nenhuma emoção, apenas fecha os olhos por alguns momentos e descansa em sua poltrona preferida, que por um acaso é a minha preferida também quando ele não está.
A primeira vez que notei sua presença em nosso apartamento, faz muitos anos, foi numa pequena reunião familiar, possivelmente alguma festa de aniversário não lembro de quem. Achei então que ele tivesse vindo acompanhando algum parente ou amigo da família, apesar dele ter se mantido isolado na sua (minha) poltrona a noite toda sem se relacionar com ninguém. Em dado momento, o nosso gato angorá, sempre tão arisco, aproximou-se dele miando e tranquilamente subiu ao seu colo. Com toda a delicadeza deste mundo, ele repôs o bichinho no chão, que, acredito, sentindo-se rejeitado foi embora da sala pra nunca mais voltar, sendo que na manhã seguinte foi encontrado morto, caído lá no andar térreo.
Depois dessa primeira noite, ele tem vindo sempre mesmo sem ser convidado. Mas a verdade é que, com seu jeito discreto e natural, ele nos cativou profundamente, a ponto de eu temer o dia em que ele deixar de nos visitar. Aí espero que ninguém se jogue pela janela.
Tarde da noite, quando já estamos todos meio sonolentos, ele se levanta e vai embora. Na porta da rua, ele vira-se meio de perfil e dá um boa-noite geral quase imperceptível, um simples murmúrio, que mal consigo ouvir e que mais adivinho porque mal posso vê-lo do sofá onde estou derreado. Hora de dormir.

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