sábado, 9 de janeiro de 2010

ALGUMA MEMÓRIA (3)

“A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas.”
Chico Buarque em “Leite Derramado”.

Pablo Neruda deu um título muito expressivo – e que se presta a diversas interpretações – à sua autobiografia: “Confesso que Vivi”. Já Daniel Filho escreveu “Antes que me Esqueça”, certamente com a preocupação de contar sua vida antes da chegada do deletador Alzheimer.
Outro título autobiográfico muito interessante é “As Amargas Não...”, diário em que o poeta gaúcho Álvaro Moreyra excluía de suas lembranças os momentos amargos. E ele viveu uma vida bastante agitada: poeta, jornalista, cronista, também foi homem de teatro. Tentou sacudir a poeira do teatro nacional na década de 20, fundando com sua mulher, Eugênia Álvaro Moreyra, a companhia “Teatro de Brinquedo”. Também é autor de uma peça de estrutura surpreendente para a sua época, “Adão e Eva e os Outros Membros da Família”, em que mostra personagem cheirando cocaína. Se bem que, naquele tempo, esse era um hábito social bem aceito nas altas esferas.
Claro que não tenho a pretensão de “escrever para a posteridade” estas minhas lembranças. Se algum amigo, parente ou descendente meu se interessar em ler estes retalhos de memória, já me dou por satisfeito. De minha parte, curioso que sou, gostaria que meus antepassados tivessem me deixado algum registro escrito de sua passagem por este mundo.
*
“Apaga a luz, quinta coluna!” – este deve ter sido o primeiro bordão que aprendi em minha vida.
Lá pelo final da Segunda Grande Guerra, quando o Brasil resolveu participar do conflito, houve um treinamento de alerta para a população civil, caso acontecesse um {improvável) ataque aéreo alemão. No início da noite, a Quarta Delegacia de Polícia – que ficava na rua Pereira Franco, a duas quadras da casa de meu avô Emílio – acionava uma sirene estridente que alertava toda a vizinhança. Imediatamente todas as luzes da casa deviam ser apagadas. Ficávamos todos, adultos e crianças, olhando pelas frestas das janelas para verificar se realmente havia um blecaute total. Se houvesse qualquer resquício de luz na vizinhança, sempre ouvia-se um gaiato gritando: “Apaga a luz, quinta-coluna!”
A chamada “Quinta Coluna” correspondia à rede de espiões nazistas que atuavam fora da Alemanha . Luz acesa poderia indicar o alvo para o bombardeio aéreo. Na casa de meu avô havia um cuidado especial em atender à regra do blecaute, pois minha avó tinha receio de ser vítima do preconceito de algum vizinho mais xenófobo. Os Rohden e os Dullius, vizinhos próximos que falavam alemão com minha avó, deviam ter o mesmo tipo de preocupação. Aliás, meu avô, que não tinha nada de germânico, também aprendera a língua através da convivência com a família de minha avó, os Buhl. Minha mãe dizia que, quando criança, só se falava em alemão em sua casa.
No final da guerra, houve racionamento de gasolina, e os veículos passaram a ser movidos à gasogênio, que ficava armazenado em um tubo de aço junto ao motor. Entretanto, como todo mundo, meu pai começou a comprar gasolina no mercado negro a fim de abastecer o seu caminhão. Um grande tonel de metal, meio escondido no fundo do quintal, junto à garagem, servia de depósito para a preciosa gasolina.
E foi atrás desse tonel que tive a minha primeira experiência sexual. Acontece que numa das casas que meu avô alugava veio morar uma menina loura e ranhenta chamada Anita, mais ou menos da minha idade, uns cinco ou seis anos. Nos dias de verão, as mães costumavam dar banho nas crianças dentro de dois tanques de lavar roupa, que ficavam lado a lado no quintal. Eu já tinha visto a menina pelada dentro do tanque, mas não ousara olhar direito porque morria de vergonha. Mas, nesse belo dia de sol, fomos os dois para trás do tal proibido tonel de gasolina, tiramos nossas roupas e ficamos ali examinando detidamente, com direito a toque, tudo o que faltava nela e que sobrava em mim. Nisso, ouvimos passos que se aproximavam e nos vestimos rapidamente. Era minha mãe, que, recuperando-se de uma operação pulmonar, vinha se sentar ao sol a fim de cicatrizar o corte que tinha às costas. Em vez de esperar um tempo, eu e Anita saímos precipitadamente como dois idiotas do nosso esconderijo, sob as vistas de minha mãe, dando a maior bandeira. Adão e Eva esgueirando-se do paraíso cheios de vergonha.
O terreno do meu avô era um universo completo. Em outras duas casas, um tio e uma tia já começavam a formar suas famílias, com filhos menores do que eu. A convivência com os meus tios - por parte de pai e por parte de mãe, eram uns doze tios com quem convivia diariamente – enchiam aquele espaço de surpresa s e descobertas. Nas laterais do terreno, minha avó plantava flores e árvores de fruta: pêra, amora, laranja, maçã, parreiras de uva.
Revejo minha mãe deitada numa espreguiçadeira debaixo de uma parreira: magra e pálida, recuperando-se da terrível tuberculose, ela está lendo um folhetim com estranhas ilustrações de pessoas e ambientes que eu nunca tinha visto antes, que despertam minha curiosidade, certamente europeus em Paris ou Roma no final do século anterior. O que salvou a vida de minha mãe foi – como ela acreditava – uma profunda fé religiosa em Nossa Senhora, aliada ao advento da penicilina e à perícia do médico que a tratou, o Dr. Augusto Maria Sisson. (Quando jovem, esse pneumologista também foi um conhecido jogador de futebol do Grêmio e, depois, do Flamengo, do Rio. Participou, em 1912, da maior goleada gremista, que aplicou 23 a 0 no Sport Club Nacional de Porto Alegre, quando Sisson marcou nada menos que 14 gols - ou “golos”, como diziam os gaúchos naquela época em que o futebol ainda era amador. Com mais de 90 anos, o Dr. Sisson ainda esteve na Amazônia praticando medicina social. Que vida!)
Nos fundos do quintal, havia um enorme espaço para os animais, galinhas, patos, porcos, coelhos, porquinhos-da-índia. E guardando a criação animal, em espaço próprio à frente do xiqueiro e do galinheiro, o Tarzã, um cachorro selvagem que daria o alerta caso um ladrão de galinhas se aproximasse nas trevas da noite.
Certa vez meu tio Vili resolveu pôr em prática um artigo da revista "Seleções do Reader’s Digest", que ensinava como fazer a gestação de pintinhos utilizando-se do calor da luz elétrica. Meu avô aceitou, mas não quis tomar conhecimento da experiência. Aquela modernidade absurda só iria aumentar a conta de luz no final do mês.
Lembro-me de minha irmã Eda, dois ou três anos de idade, balançando uma chaleira velha, dentro da qual estava um pintinho que ela, em sua inocência, acabara de sacrificar. Meu avô ficou furioso. Vejo-me também em cima da carroceria do caminhão de meu pai, jogando pedrinhas nos pintinhos amarelos que ciscam lá no chão. Acabo acertando um coitadinho e corro a enterrá-lo antes que alguém perceba o meu crime.
O terreno vizinho que ficava aos fundos era desabitado. Como nunca tinha sido aterrado, era um banhado que volta e meia se transformava num verdadeiro lago. Certa vez, Clóvis e César, meus primos por parte de pai, que moravam no outro lado da cidade, na Azenha, vieram nos visitar. À vista daquela lagoa, tiveram a idéia de juntar umas madeiras velhas que estavam por ali e construir uma jangada. Feito isso, improvisaram um remo e saímos os três navegando por aquelas águas perigosas. Achei aquela aventura de uma ousadia estupenda. Eu nunca ousara pensar em fazer uma coisa daquelas. Meus primos eram bem mais espertos do que eu. Droga, eu não passava de um bocó! Assim, aprendi com os meus dois primos que eu deveria ser mais audacioso.
Nesse mesmo dia, Clóvis me deu mais uma lição: me ensinou como se dá o nó no cadarço do sapato, com aquelas quatro pontas de igual tamanho.
Tio Nenê, o irmão mais velho de meu pai, tinha mais dois filhos homens, além do Clóvis e do César. Numa fase de crise financeira, ele trouxe a família para morar conosco. Então esses meus primos espertos trouxeram com eles dois verdadeiros tesouros: três caixotes abarrotados de revistas em quadrinho e a coleção completa do Tesouro da Juventude. Foi aí que eu descobri a coisa mais útil e mais bonita criada pelo homem: o livro.
Já em nossa adolescência, depois de muitos anos sem contato, certa noite apareceu em minha casa esse meu primo Clóvis carregando um violão. E deu um show, sob os nossos olhares basbaques. Disse que aprendera a tocar sozinho utilizando-se de um estranho método: durante os bailes do clube, ele, que não podia entrar porque não era sócio, ficava lá na rua tentando acompanhar com seu violão a música da orquestra.
Cantar, vá lá! E minha tia Luci fazia o trabalho de casa cantando tangos e boleros com sua bela voz. Mas tocar um instrumento musical, para meu avô Emílio, era coisa de vagabundo! Por isso, meio apreensivo que meu avô me visse, todos os sábados à tarde eu ia até o portão de um vizinho, um velho sapateiro que - além de ser conhecido como o único espírita kardecista do pedaço – fazia um sarau musical no quintal de sua casa. Ele tocava cavaquinho e fazia-se acompanhar de mais dois músicos: um rapaz que tocava pandeiro e um violonista que também cantava e soprava uma gaitinha acoplada sobre o violão. Era um momento mágico em que desfilavam, ao vivo, todos os grandes sucessos da música brasileira daquela época e do passado.
Foi numa dessas sessões musicais que ouvi pela primeira vez a composição de Dorival Caymmi“Marina”: “Marina, morena Marina, você se pintou...” Ouvindo a letra dessa canção tive uma revelação: percebi pela primeira vez dois sentimentos que me eram desconhecidos: o amor que une um casal e, principalmente, a dor duma coisa chamada ciúme, que pode arrasar com tudo: “Eu já perdoei tanta coisa. Você não arranjava outro igual. Desculpe, morena Marina, mas eu estou de mal. De mal com você.”
(continua)

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