terça-feira, 26 de janeiro de 2010

ALGUMA MEMÓRIA (4)

“O que finalmente eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem devo ao futebol.”
Albert Camus

Pela época do meu nascimento, meu avô Emílio tinha um time de futebol, em que jogavam os homens da família e alguns vizinhos. O mais curioso de tudo era o nome do time: “Os Onze Cardeais”. Usavam um gorrinho vermelho na cabeça, possivelmente em homenagem ao pássaro cardeal e não à púrpura religiosa dos príncipes da igreja. Lembro-me apenas dos tais gorrinhos vermelhos que, naquele tempo, eram peças indispensáveis ao uniforme dos futebolistas, que não queriam desmanchar o penteado ou serem atrapalhados pelas longas melenas.
Mas os dois grandes times amadores do bairro de São João eram o “Marquês do Alegrete”, com sede social na Rua Augusto Severo, quase na esquina com Benjamin Constant, e o “Farroupilha”. As partidas entre os dois times rivais geralmente acabavam em conflito generalizado. Acompanhado de um parente mais velho, eu gostava de assistir a essas disputas, que ocorriam em alguns campos da várzea próximos ao aeroporto, especialmente pra ver um beque central chamado Batoque, que, baixinho como o apelido sugere, costumava dar um salto mortal e rebater a bola com os calcanhares, exatamente como tantos anos mais tarde vimos o goleiro Higuita fazer. Outra jogada inusitada a que assisti uma vez foi no campo do Fiatece, no bairro dos Navegantes: um goleiro defendia pênaltis encostado a uma trave; quando o adversário chutava a bola, ele corria na direção da outra trave, agitando braços e pernas, e assim confundindo o cobrador.
Nesses gramados – e “gramados” é força de expressão, pois o que mais havia era terra batida – vi jogar um elegante centro-avante negro chamado Breno Mello, que mais tarde, atuando profissionalmente no Rio de Janeiro (mais precisamente, como reserva no Fluminense), foi convidado pelo diretor francês Marcel Camus a estrelar o filme “Orfeu Negro”, grande sucesso comercial na época. Depois disso, ele fez mais um ou dois filmes. Diz que nos últimos anos de vida, ele ganhou algum dinheiro exibindo uma cópia do “Orfeu Negro” e apresentando-se pessoalmente em cinemas do interior do Rio Grande.

Anos mais tarde, na década de 60, numa das casas do terreno de meu avô, morou um moleque de cabelos compridos chamado João Batista. Vivia ali com a mãe, que trabalhava fora o dia inteiro como enfermeira. Por isso, cabia a minha tia Luci tomar conta do moleque, que era endiabrado. Na década seguinte, ele se tornou conhecido como Batista, que juntamente com Paulo Roberto Falcão e tantos outros craques formaram o grande time do Internacional. Hoje, Batista é comentarista esportivo do canal “Sport TV”.
No “Marquês do Alegrete” brilhava o capitão do time, um center-half que jogava e comandava sua equipe com muita classe e que tinha o sugestivo nome de Napoleão. Casado com uma filha do presidente do clube, ele tinha o apoio das mulheres da família e da pequena torcida feminina, que gritavam em coro: “Napô! Napô! Napô!” Já o half-esquerdo, que devia ter uns 25 anos de idade, também era o treinador do time infantil do “Marquês”. Treinador também é força de expressão: ele apenas escalava o time e nos acompanhava durante os jogos. Havia algum comentário de que o sujeito gostava de bolinar os garotos nas sessões noturnas do cine Rosário, e a nossa tática era ficar longe dele.
O infantil do “Marquês” jogava de pés descalços e era formado por meninos entre dez e treze anos de idade. Eu jogava na meia-direita. Na ponta-direita tinha o Benito Marquesin, veloz e habilidoso. Tinha um enorme senso de humor e gostava de apelidar todo mundo. Chamava meu tio Breno Malta - gremista apaixonado pelo futebol, ainda hoje capaz de correr atrás de uma bola - de Tio Bubu. Benito era sobrinho do campeão gaúcho de ciclismo, Jovino Trombini, fato que o deixava muito orgulhoso.
O centro-avante (ou center-forward) era o Chico. Malicioso e esperto, ele vendia balas no cinema Colombo, na Avenida Cristóvão Colombo, onde assisti a muitos filmes da Metro sem pagar entrada devido a sua interferência.
Como zagueiros revezavam-se três meninos mais fortes: Mário, Aldoíno Zilio e Antoninho Além. Aldoíno acabou se profissionalizando como zagueiro do Novo Hamburgo e depois como treinador físico do Grêmio. Antônio Além não brincava em serviço: tenho um calombo no joelho esquerdo, que me impede de ficar ajoelhado por muito tempo, devido a uma entrada assassina que ele me deu. Foi meu colega no colégio dos padres, o São João Batista, e uma vez, numa aula de matemática, disse uma coisa interessante: na verdade ele deveria se chamar “Antônio Além na Segunda Potência”, já que seu pai e sua mãe eram primos e tinham o mesmo sobrenome. Também fazia parte dessa família sírio-libanesa um “brimo”, que todos os sábados à tarde aparecia no bairro carregando uma enorme cesta com os mais variados tipos de doces. Aquilo era uma festa! Mais recentemente, conversando com o jornalista e homem de teatro Edson Nequete, eu soube que, por um acaso do destino, era ele, Nequete, o tal vendedor de doces.
Outra figuraça era o Rui, apelidado de Cobra: mulato esquelético, jogava futebol usando uma reduzida sunga de natação esverdeada, deslocando-se pelo campo de maneira esquisita, como se fosse um réptil. Era engraxate ambulante, vivia em péssimas condições com a mãe adotiva e acabou morrendo de inanição aí pelos quinze anos. Certa vez, o Grêmio ia jogar em Novo Hamburgo, e Rui acabou sabendo que eu, meu pai e meu tio Breno, iríamos de carro até a cidade vizinha assistir ao jogo. Na noite anterior à partida, Rui acendeu uma vela e ficou zanzando diante de minha casa como se estivesse procurando alguma coisa que tinha perdido. Todo mundo preocupado, ele explicou que, realmente, tinha perdido a passagem de trem para Novo Hamburgo e o ingresso antecipado que havia comprado com tanto sacrifício. Compadecido, mesmo sem acreditar na história, meu pai deu carona ao Cobra e pagou o seu ingresso.
Os bailes de carnaval na sede social do “Marquês do Alegrete” eram famosos pela fantástica imoralidade, por isso não eram freqüentados pelas moças e rapazes de família. Quando muito, ficávamos discretamente na calçada pra ver a entrada das mulheres seminuas – e nem tão seminuas assim! Era um grande salão de madeira – o que não é surpreendente, já que a própria sede do Grêmio Porto-Alegrense, em plena Rua da Praia, não passava de um barracão cheio de taças, fotos e medalhas. Esses bailes eram organizados pelo faxineiro do clube, um homossexual rude e musculoso que habitava um quartinho junto ao salão. O único freqüentador desses bailes que eu conheci era o nosso amigo Nezinho, que gostava de nos reportar todas as bandalheiras que ocorriam no salão. Pouco mais velho do que a turma, era metido a malandro: cabelão preto cheio de brilhantina Glostora, calça boca dezoito apertadinha no tornozelo e um pentinho preto, que costumava manejar, em brigas imaginárias e ricamente coreografadas, como se fosse um punhal. No dia seguinte ao baile, a turma de bocós se sentava no bueiro da esquina da Vilela Tavares com Augusto Severo, e Nezinho nos contava como tinha sido a noite passada, que sempre acabava ao nascer do sol com ele e a odalisca transando sobre folhas de jornal, no meio do mato, junto ao campo de aviação.
Esse mesmo Nezinho encerrou sua carreira de malandro quando, certa noite, na frente do cinema Rosário, que ficava à meia quadra da sede do “Marquês”, se desentendeu com um desconhecido. Estava acompanhado de um amigo, um meu xará chamado Ênio, e puxou o seu famoso pentinho preto, que na penumbra passava como se fosse uma faca. O problema foi que o desconhecido puxou uma faca de verdade e saiu golpeando os dois amigos a torto e a direito. Sobrou para o meu xará, que morreu na hora, enquanto Nê passou um mês no hospital entre a vida e a morte, sobrevivendo afinal. O que o salvou foi estar vestindo um sobretudo Camelo, um casacão de pano grosso transpassado na frente, muito usado naqueles invernos.
Aí pelos treze anos, joguei futebol em outro time, o “Maltense”. Marino Boeira e Luiz Folchini, dois meninos que eram vizinhos na Rua Marquês do Alegrete, tinham acabado de fundar esse time. Apesar da origem italiana dos dois, puseram o nome português de “Maltense” porque haviam comprado numa liquidação um conjunto de camisetas que tinha no peito uma cruz de Malta. Aí jogávamos de chuteiras. Além de mim, diversos infantis do “Marquês” participavam da nova equipe, entre os quais, Aldoíno, Benito e Chico. Zeca e Ciro Chamoun, que se formaram comigo no Ginásio São João Batista, eram os novos colegas. Ciro jogava um bolão, era um centro-avante rompedor capaz de marcar muitos gols – ou “golos”, como se dizia.
Além do futebol, Marino e Luiz (colorados doentes!) tinham interesse por cinema e literatura, o que fortaleceu em muito a nossa amizade. Marino colecionava os livros publicados pela editora Mérito, assim acabei lendo “O Egípcio”, de Mika Waltari, “Uma Fábula”, de William Faulkner, “Eurico, o Presbítero”, de Alexandro Herculano, e tantos outros. Já muito politizado - torcia pelo Inter por causa da Internacional Socialista e da cor vermelha - Marino era fã de Sartre e dos grandes escritores russos. Emprestou-me “Os Caminhos da Liberdade”, “ A Náusea”, “Guerra e Paz”, “ Crime e Castigo”, “O Vermelho e o Negro”.
Voltando ao capítulo futebol, meu pai era torcedor do São José, certamente porque residira perto do clube, no Passo da Areia, logo que chegou do Interior. Quando o “Zequinha” fechou as portas, ele se tornou gremista por influência minha e de meu irmão, Evaldo Gonçalves, que mais tarde foi jornalista esportivo da “Zero Hora”. Eu fui gremista desde que nasci, influenciado por dois tios, Breno Malta (com quem jogava bola todos os finais da tarde) e Saturnino Fernandes Borba (que também foi meu padrinho de crisma).
Outro tio meu, tio Paulo, torcia pelo Renner não sei por que cargas d’água. Ele costumava me levar ao estádio do clube, situado na Avenida Farrapos. Lembro-me de ter assistido ali a uma partida entre o “Vasco da Gama” e o dono da casa. No “Vasco”, lembro-me do centro-médio Danilo e do centro-avante Ademir, jogadores da seleção brasileira. Outro craque que me impressionou foi o meia-direita Zizinho. Antes do futebol pela televisão, ver esses jogadores atuando era algo excepcional. Às vezes, conseguíamos vê-los rapidamente através do Canal Cem, que passava nos cinemas. Aí a vibração, tão distante, dos grandes clássicos do Maracanã nos causava uma grande impressão.
No “Renner”, cansei de ver dois jovens jogadores que depois se tornaram conhecidos nacionalmente: o goleiro Valdir de Morais e o zagueiro Paulinho, que logo se transferiu para o “Vasco da Gama”. E quando o “Renner” acabou, tio Paulo virou colorado, um absurdo!
Um fato esportivo que marcou a minha infância – e a de tantos brasileiros! – foi a perda da Copa do Mundo de 1950, que não ouvi pelo rádio porque tinha ido à matinê de domingo do cine Rosário. Quando saí do cinema, o clima de velório pairava no ar, o mesmo estado de choque causado pelo suicídio de Getúlio Vargas, quatro anos mais tarde. No dia seguinte, o avião que levava o time uruguaio de volta pra casa fez uma escala em Porto Alegre. Uma multidão acorreu ao aeroporto. Meu pai conseguiu um autógrafo do meia Juan Schiafino numa nota de dez cruzeiros, que ele guardou pelo resto da vida como lembrança daquele pesadelo.
Outro acontecimento marcante foi quando Tesourinha (Osmar Fortes Barcelos), ex-ponteiro direito do Internacional, depois de passar duas ou três temporadas no “Vasco da Gama”, voltou a Porto Alegre contratado pelo Grêmio. Tesourinha tinha sido o maior ídolo do futebol gaúcho, formando uma dupla infernal com outro jogador negro, o pequeno Adãozinho – a propósito de quem Plínio Marcos me contou uma história interessante: indo a Bauru para fazer uma palestra, o grande dramaturgo foi convidado a conhecer o famoso centro-avante gaúcho, que tinha encerrado sua carreira na cidade e que, agora, trabalhava na cozinha de um restaurante; conduzido até a cozinha, Plínio não conseguiu falar com Adãozinho porque ele estava dormindo dentro de uma panela.
Mestre Tesoura foi o primeiro jogador negro a vestir oficialmente a camisa do Grêmio, e me lembro de tê-lo visto jogar pelo meu time, já com mais de trinta anos, mas ainda com incrível velocidade e domínio de bola, voando pela lateral direita ou cortando enviesado do meio de campo na direção do gol adversário. Imagens Inesquecíveis!
Tesourinha ficou como o meu ídolo esportivo, assim como é o ídolo de tantos colorados que o viram jogar. Em entrevista que vi recentemente, o colorado Luiz Fernando Verissimo também o colocou no mesmo pedestal.
(Continua)

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