terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

ALÉM DA ARREBENTAÇÃO

Para Will Damas, dramaturgo e poeta anarquista.


Acabo de ler no jornal que Vivi morreu afogada no Posto Cinco de Copacabana. Ela e um homem de quarenta anos, solteiro (não era o marido dela, portanto), foram nadar além da arrebentação e morreram afogados. Segundo testemunhas, o casal chamava a atenção porque estava aos beijos e abraços dentro d’água. Por incrível que pareça, os dois corpos foram retirados do mar ainda abraçados.
Ir além da arrebentação é muito perigoso. Só quem sabe nadar muito bem é que se atreve a tanto. Esse namorado de Vivi não era como eu: devia ser um bom nadador. Fico imaginando como teria sido a morte deles: ela cansou, sentiu câimbras; ele tentou salvá-la e também se afogou. Fim.
Essa notícia me faz lembrar o dia em que conheci Vivi, faz uns trinta anos. Nunca vou esquecer o que aconteceu porque, naquele dia, por uma estranha coincidência, eu também estive a ponto de morrer afogado no Posto Cinco.
Ela era uma menina magricela, ruivinha e sardenta, que sentou ao meu lado na areia e a quem eu ofereci um sorvete. Quando eu entrei no mar, ela veio atrás, me ultrapassou e ficou boiando lá adiante na arrebentação das ondas. Não sei nadar, mas queria me exibir pra ela e fui em frente até ficar com água na altura dos ombros. A onda grandona vinha, eu pulava no balanço dela. Quando voltava a tocar com o pé no fundo, a cabeça já estava fora d’água. E assim ia me mantendo junto de Vivi, segurando sua mão por debaixo d’água porque ela me avisou que seu irmão mais velho estava jogando futebol na areia e, se visse ela namorando, iria contar ao pai – que era um militar troglodita – e aí adeus praia.
De repente, me apavorei. Não dava mais pé por mais que me espichasse. Comecei a bater pernas e braços como um louco. Vivi conseguiu voltar pra onde dava pé, enquanto eu me desesperava engolindo água salgada. “Vem pra cá, vem!” – ela gritava assustada na minha direção. Ir pra junto dela era o que eu mais queria naquele momento, mas de que jeito¿ Nisso passou por mim um garotinho flutuando numa bóia e eu, já sem fôlego, no desespero, me agarrei no calção dele. Então o moleque começou a gritar comigo, me chamando de filho da puta, já meio de bunda de fora. Aí finalmente veio uma correnteza e me empurrou na direção da praia junto com o garoto. “Me larga, desgraçado! Brincadeira mais besta!” – ele reclamava ainda quando eu o soltei. Com muito custo fui saindo d’água, Vivi me puxando pela mão. “Teu irmão pode ver!” – avisei. “Você é mesmo um bocó!” – ela respondeu. “Quase morre afogado, não se agüenta em cima das pernas e ainda fica preocupado com o meu irmão! Ele que vá pro inferno!”
Havia mais: quando chegamos ao montinho de areia onde estavam os nossos pertences, tinham roubado o meu radinho de pilhas, que eu tinha comprado com tanto sacrifício, e um relógio de pulso que Vivi tinha herdado da avó dela. “É muito azar num dia só!” – falei pra ela. “Se eu pego o lazarento que roubou o teu relógio, encho o safado de porrada!” “Deixa pra lá! O que importa é que você não morreu afogado” – ela tentou me consolar.Coisas dramáticas como essas – o meu quase afogamento e o roubo dos nossos objetos de estimação – envolvem as pessoas. Eu tinha a impressão de conhecer Vivi há um século.
Descansamos um pouco na areia, um sol violento queimando pra valer, e depois fui levá-la até a casa da tia, que morava numa transversal da Nossa Senhora de Copacabana. A entrada de banhistas era dentro da garagem e ficamos dando um amasso lá junto do elevador, enquanto não passava ninguém. Beija daqui, beija dali, comecei a baixar a parte de cima do maiô dela, quando me aparece o zelador do edifício. Foi um Deus nos acuda! A gente se soltou, ela ajeitando o maiô, eu virando as costas para o homem, naquele estado. O empata-foda arranjou um paninho e começou a limpar os carros que estavam por perto só pra sacanear a gente. O jeito era ela entrar no elevador e eu dar o fora – era o que o zelador estava querendo nos dizer com aquelas esfregadelas nos para-brisas. “Sujeito mais idiota!” – falei no ouvido dela. “Vai ver nunca fez o que a gente tá fazendo e ficou com inveja. Essa raça de zelador e porteiro de edifício é tudo recalcado.” Ela então me puxou pela mão na direção da saída, me convidando pra tomar uma coca-cola no bar da esquina.
No meio do caminho, comecei a pensar: “Vou arriscar tudo de uma vez. Se colar, colou; se não colar, azar é o meu.” Já estávamos quase chegando ao bar e eu ainda criando coragem pra fazer a minha proposta. “Por que não vamos tomar coca-cola lá em casa¿” – despejei de uma só vez sem muita convicção. Ela pareceu não entender o que eu tinha dito (ou talvez estivesse ganhando tempo pra analisar melhor o meu convite) porque deu alguns passos sem reagir e depois perguntou com toda a naturalidade: “O que foi que você disse¿” Repeti, audacioso: “Por que não vamos tomar coca-cola lá em casa¿ Moro aqui pertinho, no fim da Sá Ferreira.” Ela andou mais um pouco e eu fui atrás, esperando tudo, que ela apressasse o passo e fosse embora em silêncio ou que, antes de ir, ela me aplicasse uma bolacha. “Bem que a gente podia, né¿” – disse ela finalmente parando na beira da calçada e me olhando na cara, como se me desafiasse. “Claro!”- baixei os olhos e continuei a caminhar sem saber pra onde estava indo. “Então vamos. Onde é mesmo o teu apartamento¿”- ela falou passando a mão na minha cabeça como se eu fosse criança.
Assim fomos para o meu apartamento (felizmente os dois caras que dividiam comigo o sala-quarto conjugado não estavam lá) e tudo correu bem até o ponto em que havíamos chegado na porta do elevador, quando o bendito do zelador nos interrompera. Agora, quando seguíamos adiante, ela começou a respirar com dificuldade, ronronando como uma gata. Isso ainda me deixou mais excitado. Mas logo percebi que interpretara mal os gemidos da garota. Ela estava passando mal e me pediu que eu fosse correndo até uma farmácia comprar um remédio contra asma: era muito comum sofrer ataque de asma quando se emocionava além da conta. Recebi um balde de água fria.
Me vesti correndo, fui à farmácia e voltei num segundo, apavorado com a idéia de Vivi morrer no meu apartamento, com toda a complicação que podia surgir daí. Mas ela logo voltou ao normal, depois de dar umas bombadas na garganta com o aparelho que viera dentro da caixa de remédio. Mais tarde, eu a levei de táxi pra casa, na Tijuca, e gastei uma nota preta. Voltei pra Copacabana de ônibus, preocupado com a minha situação financeira.
Muita coisa aconteceu depois. Sempre nos encontrávamos na praia, sob o olhar vigilante do irmão. Uma vez ela veio ao meu apartamento com um violão e me cantou um samba bossa-nova muito bacana que ela disse que tinha composto em minha homenagem, falava em onda do mar, areia, sol, verão, essas coisas. Ela tocava o violão apoiando o pé em cima do meu sofá-cama e acabou furando o estofamento com o salto ponteagudo do sapato, fiquei puto da vida e quase mandei ela embora.
Durante esse tempo todo, eu continuava mantendo na gaveta do armário o tal remédio contra asma. E quando a gente ia pra cama, a bombinha sempre ficava ao alcance da minha mão, porque à certa altura, quando ela se emocionava o bastante, lá vinha aquele rosnado de gata, e eu era obrigado a me conter e lhe aplicar meia-dúzia de bombadas na garganta. Era até divertido.
Vivi desapareceu durante as férias de verão e depois voltou, vestindo o seu uniforme de normalista, com um presente pra mim, um copo onde estava escrito: “Estive em Poços de Caldas e pensei em você!” Depois de algum rodeio, acabou dizendo que estava grávida por minha causa. Não acreditei muito, ela ficou zangada e foi embora gritando que nunca mais queria ver a minha cara. Duas semanas mais tarde, nos encontramos dentro de um ônibus e ela veio comigo ao meu apartamento. Mas não aconteceu nada dessa vez porque, antes do ataque de asma, ela começou a sentir outro tipo de incômodo: tinha feito um aborto poucos dias antes. Pra encurtar a história, acabamos discutindo e brigando. Falei que por causa dela eu tinha perdido o meu radinho de pilhas e o meu sofá-cama estava furado.
Depois desse dia, eu nunca mais a vi. Joguei fora o tal remédio contra asma, inclusive porque já devia ter perdido a validade.
Alguns anos depois fui abordado , na praia, por um sujeito muito simpático. Era o tal irmão dela. Me informou que ela tinha se casado com um capitão do exército e que estava esperando um segundo filho. Pra mim, ela continuou sendo a imagem comovente de uma ruivinha com pele de ferrugem, no seu uniforme de colégio de freiras.
Agora essa notícia no jornal... Pensando bem, o mais provável é que Vivi tenha se emocionado demais, além da arrebentação, levando consigo pro fundo do mar – igual uma sereia – o homem que não pudera livrá-la de uma crise de asma.

Um comentário:

  1. Ah!Ah!Ah! Muito "du bão". Além de erótico tem um humor fantástico! Tenho tesão por sardas até hoje, rsrsrs, só não caso com o corpo inteiro. Brigado pela "ô, ménage". rsrs.
    Um beijo.

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