quarta-feira, 29 de setembro de 2010

NA JANELA

“O medo foi a primeira coisa que os deuses criaram no mundo.”
Statius, em “Tebaida”.

A velha senhora acabou de sair do supermercado e agora arrasta o carrinho de compras em direção ao seu apartamento. São três quadras pela calçada meio esburacada. Em sua direção vem um rapaz barbudo, que faz parte do bando de moradores de rua que há alguns dias se instalou por debaixo das marquises daquela rua.
Depois de se cruzarem, a velha senhora desconfia que o rapaz parou e que virá atacá-la pelas costas. Ela se vira e vê o rapaz parado junto ao meio-fio.
“Que é que tá olhando, velha?”, pergunta o rapaz. “Tu qué apanhá?”
Ainda mais assustada, a velha senhora prossegue o seu caminho o mais rápido que pode, com medo que o rapaz venha ao seu encalço.
Ela mora sozinha num apartamento térreo do pequeno edificio. A janela do seu quarto-sala dá diretamente para a calçada. Antes de dormir, ela costuma ler na cama algum livro da coleção “Sabrina”, pra espantar as idéias tristes. Alguém bate na janela e a velha senhora, como sempre, leva um susto. Pode ser algum vizinho, algum parente. Ela abre uma fresta na janela protegida por uma grade de ferro. Lá está o rapaz barbudo.
“Pelo amor de Deus, a senhora não me arranja um prato de feijão com arroz?”, pergunta ele. “Eu tô morrendo de fome.”
A velha senhora sente pena do pobre coitado. Espírito generoso não lhe falta: faz poucos dias, a pedido do pároco da igreja de São João, ela acompanhou a caminhada final dos “sem terra” pela avenida Farrapos até o Palácio Piratini, no centro de Porto Alegre.
“Posso te oferecer café com leite”, diz ela. “Espera um pouquinho que eu vou esquentar o leite.”
Ela apanha no armário uma caneca de metal que tinha comprado na loja de 1,99 e que ainda não tinha usado. Através da grade, ela entrega ao rapaz a caneca de café com leite e um pãozinho com manteiga.
“Olha”, diz o rapaz depois de se alimentar, “a senhora tem que lavá bem essa caneca, lavá com água quente e sabão, porque eu tenho HIV.”
A velha senhora tem um momento de hesitação e depois devolve a caneca ao rapaz, dizendo:
“Fica com ela. Assim, quando tu precisar de uma caneca, tu já tem.”
Na noite seguinte, luz acesa no quarto, o rapaz bate novamente na janela. A velha senhora atende.
“Quero lhe pedi um favor”, diz o rapaz. “A senhora pode me emprestá um pouco de gel pra passar no cabelo? Resolvi fazê uma visita pra minha mãe e quero ir com as melena bem penteada.”
A velha senhora vai até o banheiro e volta com um pote de brilhantina que foi deixado ali por um sobrinho há mais de trinta anos.
“Pode ficar com o potinho”, diz ela.
“Muito obrigado, senhora”, diz o rapaz. “Sabe, vou visitar a minha mãe por causa da senhora.”
“Como assim?”
“A senhora se parece muito com a minha mãe, tem a cara dela. Por isso, fiquei com saudade dela. Amanhã vou procurar por ela.
“Vai, meu filho, vai sim. Tua mãe vai cuidar de ti. Estás precisando dela”, encerra a velha senhora, já fechando a janela.
“Só mais um favor”, diz o rapaz. “A senhora não me empresta vinte reais pra eu pegá o ônibus? A minha mãe mora no interior, em Osório.”
Então a velha senhora vai até a cozinha e apanha vinte reais de dentro de um açucareiro, onde esconde o dinheiro que recebe do INSS.
Na terceira noite, a velha senhora está lendo na cama “O Grande Amor de Eduarda” quando batem na janela. Ela desliga a luz. Lá da rua, o rapaz grita:
“Não adianta tu apagá a luz, velha! Eu sei que tu taí!”

Um comentário:

  1. A solidão que medra na velhice, é muito triste; como Donana do Ciambroni, lembra Ênio?
    Esta "velha senhora", que vc retrata tão bem, jamais ouvirá tranquila uma batida na porta depois de experimenciar um encontro com personagem que vemos, cada vez mais, em nossas esquinas, ruas e viadutos. Os dois personagens, que seu conto não julga, e isso é lindo, estão abandonados por nosso país, nosso povo, nós mesmos. Quanto nos falta pra readquirirmos nossa dignidade, respeito e amor. Como sempre, vc me emociona, e não posso deixar de reclamar que quero mais...

    ResponderExcluir